30 abril 2013

destralhando

Está quase terminada* mais uma daquelas fases em que os três homens da casa tremem, lívidos, à passagem do furacão-de-limpezas-gralha, temendo pelo desaparecimento dos seu brinquedos preferidos, ou daquela factura mesmo, mesmo importante. São receios pouco fundamentados porque raramente deito fora o que não devia. Mas é verdade que me vejo livre de muita coisa. Destralho compulsivamente, e com orgulho. O roupeiro semi-vazio é uma clareira inundada de sol, na floresta. Os armários da cozinha limpos são convite a novas receitas. A casa-de-banho sem produtos fora de prazo faz qualquer cocó cheirar efectivamente a rosas. A (pouca) roupa lavada, dobrada, guardada nos devidos lugares faz-me expirar em doce liberdade das desnecessidades materiais. Dar por terminadas as limpezas de Primavera é o nirvana de uma dona de casa em época de crise. Se tivesse incenso, acendia-o um bocadinho. Mas não tenho, porque devo tê-lo deitado fora no ano passado.

* Sempre, sempre, sempre a viver em antecipação. Já estou a pensar em calçado de praia, nesta fase do campeonato. Mais um mezito, e entro na febre do regresso às aulas.

29 abril 2013

definitivamente

Decidimos entrar no mar, à vista das ondas enormes. Decidimos arriscar. A onda aproxima-se, passamos. Vem outra, subimos e descemos com ela. E outra, grande demais, que nos obriga a mergulhar e centrifuga-nos numa rebentação estrondosa que não acaba. Perdemos o alto e o baixo, as cores invertem-se e, finalmente, percebemos que vai passar. Mais um pouco, e voltaremos a encher de ar os pulmões. Valeu a pena o mergulho.

A diferença, querida Rita, é que agora não volta tudo ao lugar. A Ana disse-o bem, o fim do teu sofrimento foi um alívio muito passageiro para nós. Vê lá que egoísmo da nossa parte, desejarmos que não sofresses mais. Que estupidez. É claro que tinhas direito a sofrer mais, mas a sofrer como qualquer outra mulher de 30 anos. Era-te devido curar desgostos de amor. Gerir ansiedades pequeninas. Matar saudades. Desejos. Tinhas direito a tanta, tanta coisa e, ainda por cima, não ias fazer nada pela metade. Pego no postal que me enviaste há exactamente um ano, de Moçambique, e queria estar lá contigo. Conhecendo-te para além das palavras. Programando outras viagens. A porcaria da morte ser para sempre é injusto demais. 

26 abril 2013

liberdade

Uma dos textos mais bonitos do Antigo Testamento é o chamado Poema da Criação (Gn,2), largamente inspirado na mitologia suméria (séc. VII A.C., na sua forma mais tardia). Nesta narrativa, a História da humanidade começa com Deus criando o Homem a partir do pó, insuflando-lhe a vida pelas narinas. Se eu tivesse de criar a minha própria alegoria da nossa génese, falava de seres moldados de plasticina. O barro é demasiado estático e finito para uma vida livre e eu não acredito no sentido da vida sem liberdade, maleabilidade e cores garridas.
Será que, depois de 39 anos de alegada liberdade em Portugal, podemos pegar na nossa vida e fazer dela o que desejamos? Será que o que nos condiciona é apenas a preguiça em amassar e voltar a moldar? Há muitos sinais que sim, principalmente vindos das correntes positivistas que infestam a blogosfera e me irritam particularmente. Mas não consigo ignorar os incómodos sinais que não. Que mesmo que estudemos, que nos esforcemos, que nos entreajudemos, muitas vezes não somos livres de escolher a nossa vida.
Isso é particularmente notório a nível profissional. Ando pelos centros comerciais e vejo que as meninas que me perseguem para me mostrarem um creme ou me venderem um cartão de crédito não escolheram mesmo fazer isso. Vejo mães que têm de optar entre ter emprego, sem quase estarem com os filhos, ou ficar em casa, mesmo que não fosse essa a sua vocação, sossegando a ânsia de fazer mais alguma coisa com empreendedorismos passageiros. As divulgações de anúncios de trabalho dizem-nos que a economia só precisa de máquinas sem vida própria e os media da moda garantem-nos que a nossa vida só a nós nos pertence. E ninguém parece reparar na contradição. Afinal, como é que podemos conquistar a nossa liberdade no meio de tantas exigências divergentes? Era tão simples se bastasse um cravo vermelho à janela.

24 abril 2013

em vez de chocolates

Como qualquer outro ser XY* XX, sou recordada mensalmente da minha condição feminina. Não me dão apetites nem fico de lágrima fácil. Só quero que me deixem em paz. Enquanto umas fantasiam com novas modalidades de consumo de creme de cacau e avelãs, em visualizo os meus punhos cerrados esmigalhando os dentes de algumas pessoas que simplesmente precisavam muito de aprender a calar-se e a ouvir os outros. Sinto o sabor do sangue nas gengivas e tenho de sair porta fora, quando contar até dez não chega. É tão curioso que as pessoas que não me conhecem bem pensem que eu sou pacífica, quando a minha paciência é um penoso e constante exercício diário.

* Obrigada ao meu remarido e à Alexandra Nobre, provedores da validade científica deste blogue (e da minha efectiva feminilidade).

18 abril 2013

ansiaudades

Quando lanço as cartas de tarot não estou a fazer previsões de futuro (e aviso disso a clientela, toda ela amiga). Pego no sentido do conjunto, franzo a testa para o efeito credibilidade e proclamo ruminações que chegam a parecer fazer sentido. Os meus ouvintes ficam consolados, quando era consolo que buscavam. E preocupados, quando já vinham com uma nano-pulga atrás da orelha. Não sou futuróloga, sou uma amplificadora de consciências confessamente amadora.
Contudo, suspeito que sei exactamente a forma como o meu futuro me fará olhar para o passado, agora presente. Sei que não me vou esquecer de tudo de fundamental que aprendi este ano. Vou recordar docemente as coisas tristes. E vou ter umas saudades monstruosas das coisas boas, tão grandes que, para caberem no tempo, não se contêm nesse momento por vir. Quando vejo o meu filho mais velho a finalmente aprender a andar de bicicleta, fico já com saudades do orgulho dessa conquista só dele. Quando vejo o meu filho mais novo a provar comida de cão e a pedir-me mais, para me desafiar, o coração pára por uns segundos - não tanto de surpresa perante mais uma patifaria mas sobretudo de um amor explosivo pelo ser absolutamente único que ele é.
Posso vir ainda a fazer muitas coisas na vida, mas nenhuma chegará aos calcanhares do privilégio que é acompanhar o crescimento destas criaturinhas. Que ainda por cima gostam imenso de mim, caramba.

15 abril 2013

canções que te trazem de volta à Vida

Silêncio.A cadência regular da tua pedalada. O vento que se levanta nas pontes sobre o Sena. Crianças a brincar num jardim. As ondas a rebentar na noite. O murmúrio imperceptível de um céu perfeitamente estrelado, a brilhar para ti.


Ninguém sabe onde leva este grande caminho, mas o meu passa obrigatoriamente por tudo o que nos deixas com o teu testemunho diário. À tout a l´heure, querida Silvina.

14 abril 2013

um dia caso-me pela segunda vez com o mesmo homem

Hoje é o dia.

E amanhã ele vai de lua-de-mel com um alemão de 1,90m. Eu fico a tomar conta dos meninos, como boa esposa. Se fosse ao contrário, o mundo inteiro ficaria chocado, o que só revela que os séculos passam mas isto continua tudo na mesma.

13 abril 2013

se era suposto caminhar para uma sabedoria superior, enganei-me na viragem

34 anos e sou cada vez mais eu sem pedir desculpa a ninguém. Esta é a minha altura, o meu peso, a minha cor de cabelo, a ondulação do meu perfil. Sou eu, olhem, pronto. Sim, acordo cedo. Sim, deito-me cedo. Sou organizada, intensa e exigente. Mas ando a treinar isso da paciência há muito tempo. Já desisti da ideia da espontaneidade. Gosto do meu café longo e de refeições curtas. Não gosto de festas. Nem de gente a falar alto. Nem do ruído latente de muitas coisas acumuladas. Gosto de árvores, da brisa de Verão e de estar ao sol. De cães. De crianças, e que elas me deixem sossegada amiúde. O melhor presente, hoje, é que aqueles que gostam de mim respeitem e estimem cada uma das minhas particularidades. Sim, isso inclui um email palavroso em lugar de um telefonema de obrigação. O melhor presente, de hoje em diante, era não haver mais nada feito de aparências, de convenções, de imposições sociais: só transparência e verdade, como a que irradia sempre dos meus olhos, mesmo no meio de um sorriso de troça.

12 abril 2013

o lado solar

Inverno longuíssimo, este. Terminou. Se ao menos todas as outras escuridões pudessem ser assim encerradas, declarado o fim à crise, às neuroses colectivas, às fugas à realidade, ao desemprego, ao desespero e à doença. Os últimos meses, duríssimos para tantos, deixaram-nos a todos o coração em ferida e as emoções em carne viva. A minha vida também é feita de cada vez mais incertezas mas, caramba, espero que ao menos me venha tornando cada vez mais humana, atenta, e centrada no fundamental.
Continua a haver muita gente a viver horas dolorosas, minuto a minuto. Entrego-lhes as minhas orações e ajudo como posso. Se quiserem fazer o mesmo, hoje podem começar por aqui.

Nota posterior: ...Ou, pessoalmente, no dia 20 de Abril, na Escola Superior de Saúde da Cruz Vermelha Portuguesa, numa iniciativa da Pólo Norte, da SMS e da Miss Glittering, entre muitas outras pessoas.

09 abril 2013

urgente: voltar à ficção

Rastejo pelas coisas do dia-a-dia. Acho que suspendi o voo quando parei de ler ficção e de correr (vejo agora como estas actividades se complementam). Vou já pegar no Wild, presente da maravilhosa Melissa, e calço os ténis para ir dar voltas à Gulbenkian no proximo sábado, a ver se já não me doi o adutor.
Entretanto, a busca de casa deixou-me exausta. Suspendemos a torrente de visitas e tornámo-nos mais precisos no ideal. O trabalho continua, logo vemos em que moldes com as mudanças que aí vêm no financiamento à Ciência. Os meninos rompem joelheiras, descobrem novas músicas favoritas, continuam a fazer muitas perguntas por minuto e adoram-se. Exigimos a chegada do bom tempo para gozar os fins de tarde sonhados no jardim. Se era para levar a vida na radiação cinzentificante de luzes artificiais, tinha seguido a minha opção carreirística e, ao menos, agora iamos passar uma semana à Costa Rica. Posso fazer reset? Deixem lá, já não me consigo imaginar a sério no modo lifestyle (passo meia hora no El Corte Inglés e fico cansada de revirar os olhos).

01 abril 2013

o primeiro encontro

Estou tão nervosa, hoje. O cabelo está horrível. Não tive tempo para me maquilhar decentemente (e no trânsito, já se sabe, multam-me). Não sei o que ela vai achar de mim. E eu não sei o que vou achar dela, ao vivo, depois de só lhe ver forografias nessa grande mentirosa que é a Internet. Tenho quase tanto medo que o segundo quarto afinal seja demasiado pequeno como há anos atrás tinha medo de descobrir, à mesa do café longamente mexido (não havia smartphones quando eu comecei a namorar!), que ele não gostava de ler. Ou de viajar. Ou que comprava religiosamente A Bola.