01 agosto 2025

Tenho sítios para ir

Estou a tentar decorar o salmo 91 para o proclamar aos miúdos quando for ter com eles à prancha de stand up paddle nas próximas semanas. Funciona assim: eles afastam-se da costa (dos pais), vão até à última bóia, prendem as traquitanas todas e ficam para lá uns bons tempos à conversa, a nadar, a mergulhar, a tratar de assuntos adolescentes. Sabem que, tarde ou cedo, eu entro no mar e vou a nadar até eles. Quando chego a distância segura mas suficiente para que me ouçam, anuncio a Palavra. Sempre a mesma naquelas férias, alguma coisa há de ficar. Depois deixo-os em paz e volto. É mais fácil na maré vazia e quando não estão muitas ondas. 
Isto para dizer que até a oração pode ser movimento, como bem sabem os nossos irmãos judeus. A poesia, então, nem se fala. Tenho sítios para ir e coisas para fazer, quando não tiver, não serei mais eu. Fiquem com um bocadinho de Walt Whitman, que não sei de cor, a minha memória nunca recuperou das gravidezes. E boas férias.

Song of the Open Road

Afoot and light-hearted I take to the open road,
Healthy, free, the world before me,
The long brown path before me leading wherever I choose.
Henceforth I ask not good-fortune, I myself am good-fortune,
Henceforth I whimper no more, postpone no more, need nothing,
Done with indoor complaints, libraries, querulous criticisms,
Strong and content I travel the open road.
The earth, that is sufficient,
I do not want the constellations any nearer,
I know they are very well where they are,
I know they suffice for those who belong to them.
(Still here I carry my old delicious burdens,
I carry them, men and women, I carry them with me wherever I go,
I swear it is impossible for me to get rid of them,
I am fill’d with them, and I will fill them in return.)

As minhas parceiras de caminho:

Apanhada na curva

A Gata Christie

Boas intenções

Dois dedos de conversa

O blogue azul-turquesa

Panados e arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

18 julho 2025

Pôr o pé em ramo verde

Como praticante de corrida nos trilhos, esta expressão tem um sentido bastante literal para mim. Ponho montes de vezes o pé em ramo verde, o que desaconselho. Os ramos - verdes ou maduros - costumam ser bastante escorregadios, sobretudo quando choveu ou está aquela humidade de madrugada, tão portuguesa. O mesmo se passa com a pedra. É de evitar. Aqui tenho de fazer distinção entre vários tipos de rocha. Dos meus estudos de geologia com os pés, posso dizer-vos que o xisto é um escorrega, o calcário, depende, o arenito é tranquilo, e o granito costuma ser gerível, sobretudo quando coberto de líquenes. Adoro líquenes. Onde é mesmo, mesmo bom correr é sobre a caruma de um trilho cheiroso de Verão, por entre a sombra das árvores, sem demasiadas raízes nem silvas que cresceram de forma descontrolada. Maravilhoso é o percurso que sobe ligeiramente a encosta de uma montanha e onde vamos acompanhando a mudança da paisagem, até para lá da linha das árvores, rodeado do dorso azul das cordilheiras em volta. Se é para continuar a sonhar, com neve no topo e um lago lá em baixo. Gostava de conseguir transmitir a sensação de transe de passar horas sem fim a pôr um pé à frente do outro, uma atividade absolutamente inútil, dançar com a maior leveza do mundo, tudo nosso, mas acho que é preciso experimentá-la. Experimentem.

As minhas companheiras do Largo dizem outras coisas sobre pés em ramos verdes, aqui:

Apanhada na curva

A Gata Christie

Boas intenções

Dois dedos de conversa

O blogue azul-turquesa

Panados e arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

11 julho 2025

Terapia

Lembro-me que, quando fiz terapia, fiquei um pouco desiludida por não poder culpar a infância de todas as minhas angústias. É isso que nos vendem e, ainda assim, há tanto mais. Antes de escrever este texto, fui consultar as notas que tomava à saída do gabinete da Rua do Ouro. Agora, não percebo quase nada dos tópicos que sublinhei, mal reconheço os dilemas e as epifanias. No entanto, essas sessões foram fundamentais naquela altura da vida. A terapia é como estar no alto de uma montanha a gritar, só que o eco que nos é devolvido não é uma repetição, são perguntas. Talvez as respostas que encontramos sejam as que fazem sentido naquele momento em particular. Talvez boa parte do alívio venha do próprio ato de transformar emoções em palavras partilhadas. Não nos livramos das emoções mas puxamos o fio do novelo, desarrumamos tudo, com jeito e umas agulhas, sai dali um casaco de malha.

Todas as pessoas mentalmente sãs que conheço beneficiaram de terapia, quando encontraram o terapeuta certo. Gostava de dizer que o mesmo se aplica às pessoas doentes. Mas a verdade é que algumas pessoas (já) não têm força nem para trepar a esse penedo. Aquilo que me levaria agora de novo à terapia é a impotência esmagadora de ter pessoas assim à minha volta e não poder ajudá-las. Se calhar fazia-me bem marcar uma consulta.

Noutros divãs:

Apanhada na curva

A Gata Christie

Boas intenções

Dois dedos de conversa

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Panados e arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

04 julho 2025

Salvação

Não sei se isto também vos acontece. Tenho muito mais fé na salvação daquilo que é meu do que no que é dos outros. No meu SCOBY, que este ano ainda não produziu uma kombucha decente, se for honesta, mas não desisti dele. Na propagação da begónia que apanhou calor a mais e é claro que não vai vingar (stop watering dead plants!). No meu primeiro casamento. No vestido que tingi 3 vezes mas não vai deixar de ser alaranjado. Nos bolos que ficaram demasiado tempo no forno. Na minha relação com uma colega de trabalho. No Futebol Clube do Porto com o plantel atual. Enquanto há vida, há esperança. Na verdade, até para a morte há salvação, para quem acredita. 

27 junho 2025

Não bebo cerveja

No país em que quase tudo gira em torno dos comes e bebes, assumir-me não consumidora cerveja é o equivalente a ser a única menina no infantário que não tinha cuecas com bonequinhos, por isso tenho experiência. A cerveja é cereal, é fermentação, é frescura, é verão, tem tudo para eu gostar dela. Já dei para esse peditório, agora só me faz mal. O que importa é que hoje é o quadragésimo aniversário do meu maninho querido e por isso, em lugar de uma imperial ou de um fino (estou a adivinhar que esse debate será tema de outras autoras deste coletivo), talvez beba uma champanhota.

Apreciadoras de uma fresquinha:

Apanhada na curva

A Gata Christie

Boas intenções

Dois dedos de conversa

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Panados e arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

19 junho 2025

Caramelo

É mais difícil acertar no ponto do caramelo, agora que estraguei o termómetro de cozinha, mas continuo a prepará-lo de cada vez que terminamos uma temporada de uma das séries que vemos em família. Requer paciência, raspar os grãos de açúcar que ficaram acima da linha de água, no tacho, ir mexendo sem perturbar a superfície até chegar à altura de juntar a manteiga, o sal e as natas frias (uso iogurte grego). Criei esta tradição do caramelo porque sou gulosa e porque acabo por inventar trabalho na cozinha, apesar da minha parca domesticidade. Nem sequer tenho assim tanto amor à rotina. Preciso que estas coisas pequenas, mas previsíveis, ocupem espaço na história da minha família. Não quero correr o risco de olhar para trás e ver só divórcio, confinamentos, doenças, mortes, os fantasmas da quase guerra. Se calhar é por ler demasiados romances que não consigo não ter uma noção de narrativa do dia-a-dia. Cada vez me interesso menos pelo que não é ficção. Faço caramelo salgado para cobrir pipocas e sento-me no chão da sala enquanto os de sempre lutam pelo canto do sofá. Nessa altura, está tudo no seu lugar. No filme 'Adaptation', que vi recentemente, um guru do guionismo alertava contra as histórias sem drama e resolução. Pois sim, este é o meu enredo e será tão previsível e sem sobressaltos quanto estiver nas minhas mãos.

As outras doçuras:

Apanhada na curva

A Gata Christie

Boas intenções

Dois dedos de conversa

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Panados e arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra

13 junho 2025

Não somos iguais

Bem-aventurados os vulneráveis, porque lhes será estendida uma mão. Bem-aventurados os curiosos, a quem será dada a eterna descoberta. Bem-aventurados os perseguidos, possam logo crescer-lhes asas. Bem-aventurados os tontos de amor, a quem será dada a comunhão. Bem-aventurados os que têm fome e sede de quem grite onde todos fazem silêncio. Bem-aventurados seremos quando, incompreendidos, banidos das redes sociais e dos jantares de família, não compactuarmos com as vozes que teimam que não somos iguais, porque a igualdade não está na origem, mas no cumprimento do sonho.

Todas diferentes, todas semelhantes:

Apanhada na curva

A Gata Christie

Boas intenções

Dois dedos de conversa

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Panados e arroz de tomate

Quinta da Cruz da Pedra