30 junho 2014

a fronteira intransponível

É cada vez mais ténue, neste mundo tão mediatizado, a fronteira entre as esferas pública e privada. Contra mim falo quando digo que nos apropriamos com grande à-vontade de pessoas e acontecimentos públicos, como se comentássemos uma paisagem, ou um grupo de animais em cativeiro. Se o acontecimento é do conhecimento geral, está aberta a feira das opiniões, com descontos, saldos, destaques inflacionados, à vontade do freguês. Completamente à revelia dos sentimentos daqueles que estão, de facto, directamente envolvidos na ocorrência.
Só que aquilo que acontece à vista de todos é, antes de mais, uma situação pessoal e íntima, tratando-se de uma celebração ou de uma tragédia. E devíamos ter algum pudor antes de tecer observações à distância, por melhor que seja a nossa intenção. É triste que tenha sido a morte do filho de uma figura pública, mas que era também amigo do meu irmão, que me tenha feito sentir na pele o asco pela mediatização de tudo, a todo o custo. Não é justo forçar a passagem para o que é privado pelo fascínio mórbido de quem arrasta o olhar sobre um acidente na estrada, porque gosta de ser recordado da pequenez da nossa humanidade. Digno do Homem que passa em diante, respeitando, e reservando em silêncio discursos que ninguém encomendou.

27 junho 2014

fel

Com certeza absoluta, só sei de uma pessoa que me odeia. Se mais alguém houver, disfarça o suficiente para me passar ao lado. O que não é difícil, dada a minha muito estimada inocência. Mas esta pessoa exala fumo tóxico quando passa à minha beira. Nunca percebi porquê e já desisti de tentar encontrar motivos. A cada oportunidade, encosta-me a uma esquina e lança-me o seu veneno com as mesmas presas lustrosas com que sorri cinicamente. Hoje estava muito cansada e a ferroada doeu. Só não custou mais porque tive, logo de seguida, uma boa notícia que me deixou respirar ao fim de vários meses de incerteza profissional.
Dizem que a bondade é contagiosa mas a maldade é muito mais requintada: com um jeitinho insidioso, fica a trabalhar pela calada e apodrece-nos as entranhas. Imagino como seria se coleccionasse ódios como tanta boa gente que para aí anda e mais se expõe. Lá se ia à vida este luxo que é a fé na humanidade.

26 junho 2014

prime donne

É ainda mais difícil do que ser rico e aspirar ao Reino de Deus: antes passará um camelo pelo buraco de uma agulha do que o comum dos mortais aceitará dignamente uma crítica. O ego é como a imagem corporal feminina, ou demasiado inchado, ou desgraçadamente débil, sendo raros os momentos de equilíbrio. Quem consegue ouvir um “não gosto desta tua obra” sem sentir amargura? Quem acolhe sugestões de melhoria com verdadeira humildade, agradecendo intimamente a possibilidade de fazer melhor?
Piores são os que se inclinam com desproporcional modéstia, julgando-se desmerecedores de atenção, quanto mais de elogio. Sem entrega apaixonada, produzem obra segura e evitam o ricochete das balas das reacções alheias. Já o autor amador morde a mão de quem destrata a sua obra, reagindo com violência à incompreensão, com desprezo à desconsideração. Quem ama o que faz, ressente-se se o outro não sente o que lhe foi oferecido de peito aberto. Aquilo que distingue uma prima donna histérica de um censurado elegante é apenas a penosa graciosidade com que este engole uma apreciação negativa.

25 junho 2014

a extensão das pequenas asas

Não me envolvi na barafunda que vai ali para os lados do Pais de Quatro mas confesso a minha surpresa perante as reacções de alguns leitores. É certo que o João Miguel Tavares é um grande provocador mas não estava à espera que a brigada das crash-test-mummies se erguesse com tamanha fúria. E o "crash-test-mummies" aqui é muito literal, para quem não tem passado por lá: trata-se das extremosas progenitoras que não descuram a segurança dos seus rebentos nem por um milissegundo.
Eu chumbaria vergonhosamente num teste desse género. Certo, a segurança dos meus filhos é responsabilidade minha e não é para relativizar; mas confesso que deixo o sentido prático levar a melhor muitas vezes e facilito com certas exigências. Não é por ter pretensões hippie nem para afirmar qualquer tipo de ideologia retro - uma tentação para muitas mães criadas aos atropelos em triciclos de alumínio e napa dos anos 80; é porque acho mesmo que o contacto com a insegurança faz parte de crescer. Lidar com o desconhecido e superar o medo também são ferramentas fundamentais para a vida.
Foi de coração apertado que mandei ontem, pela primeira vez, o mais velho à mercearia. Levava duas moedas na mão, passos hesitantes e regras bem aprendidas. Dobrou a esquina e deixei de vê-lo durante quatro minutos, durante os quais sustive a respiração e duvidei: estará já na altura certa? Quando regressou, tive no imenso sorriso e na excitação incontida do meu filho a confirmação de que foi um presente que lhe dei, mais este bocadinho de liberdade. O mundo está cheio de perigos - pelo menos que estejam os meus filhos conscientes disso, voando cada vez mais alto para longe do ninho, à medida da envergadura das suas asas.

24 junho 2014

capuchinho vermelho e os lobos maus

Sou incontornavelmente introvertida (ia dizer irremediavelmente, fintei  a tempo o deslize). Já aqui confessei que evito o colectivo quando é possível e, não o sendo, ajusto a armadura para o combate que travo contra a vontade de isolar-me. Estou crescida e até disfarço medianamente: faço conversa de circunstância, não abdico do que gosto mesmo que isso implique conhecer pessoas novas, e sigo guiões de convivência cordial estabilizados ao longo de décadas de tentativa e erro.
Mas continua a custar-me a admissão numa nova tribo. E tratando-se de um grupo relativamente homogéneo e diferente de mim, custa ainda mais. Se é composto essencialmente de homens, mais velhos, batidos naquilo que me fez aproximar deles, é preciso lutar muito contra a minha natureza e pedir licença para entrar, de cabeça baixa. Vou entrando, ouvindo, desaparecendo para dentro da minha sombra. E com o passar do tempo orgulho-me mais de ir vencendo este obstáculo do que de todos os montes que consigo trepar, todas as rampas que corro com o peito a explodir, todas as horas que peço ao corpo que dê tudo. É que é muito mais fácil coagir pernas, braços e coração do que debelar temores antigos.

23 junho 2014

recta final

Ainda falta mais de um mês para ir de férias mas já fazem muita falta. Tenho acumulado muita coisa. Não é glorificação da ocupação, é dizer que sim a isto e àquilo, sucessivamente. Não só trabalho mas também lazer, que se multiplica e me sai do corpinho. Não é queixa, isto, é um reparo. Tenho de desacelerar (até no ritmo de corrida) e encaixar tempos de paragem no meio da agitação. Dar lugar a nada, de vez em quando. E dar tempo a Quem espera pacientemente por um intervalo para entrar no momento oportuno.

20 junho 2014

os príncipes encantados que se cuidem

Aviso: este post pode conter *spoilers*. Mais para quem achar que os filmes de animação são uma questão estritamente de narrativa e não sobretudo de estética, mas pronto.

Fui ao cinema ver o Como Treinar o Seu Dragão 2. A grande “surpresa”: uma mãe heroína, mas de uma heroicidade pouco ortodoxa – quantas vezes temos figuras maternais que são anti-heróis, caídas em desgraça e resgatadas do fundo do poço? Esse costuma ser o papel reservado a agentes do FBI, espiões britânicos e, na loucura, vulgares pais ausentes. Mas aqui encontramos uma mãe que abandonou (!) a família em virtude das suas convicções e que, no entanto, é resgatada no coração da sua gente e do público em geral.
À primeira vista, isto contribui para convencer-me que as princesas de hoje já não são as indefesas donzelas de antigamente. Tal como aconteceu no Frozen (e até no Cars, para citar alguns dos preferidos dos meus filhos), personagens femininas agarram no seu destino pelas rédeas e os seus companheiros masculinos que se esforcem por acompanhar tanta pedalada. Mas logo retraio a impulsiva exclamação: “vês, filho? esta princesa é forte e corajosa como a mãe”. Abate-se sobre mim um cinismo primordial, aquele que vê neste exemplo mais uma revelação do actual reinado do politicamente correcto nos mass media de entretenimento.
Sim, senhor(a), há cada vez mais mulheres a fazer papel de gente e não de anémona, mas será que isso não corresponde à moda de dar sobredimensionado destaque às "coitadinhas" das minorias? Afinal, quando foi a última vez que vimos uma princesa Disney caucasiana (tirando a Elsa e a Merida, já sei), depois de um desfile de adoráveis meninas árabes, nativas-americanas, chinesas e afro-americanas? E por que é que agora todas as séries norte-americanas têm de picar o ponto nas personagens latino-americanas, afro-americanas, sino-americanas, não heterossexuais, e mais todos os outros nichos de eleitorado e mercado (que agora me escapam porque felizmente já não não tenho de gramar a horrenda publicidade made by Tio Sam há quase três anos)? Minha boa gente, não me entendam mal: é óbvio que eu acho que a ficção deve reflectir a diversidade da vida real, o que me chateia é que se use a colagem muitas vezes forçada dessa diversidade em prol de uma agenda comercial. Não quero ver princesas destemidas, com vontade própria, só porque isso vende mais tiaras de diamantes; quero vê-las porque só assim conseguem a identificação de novas gerações de meninas libertas da ditadura cor-de-rosa. E quero continuar a ver príncipes valentes a par dos seus sucedâneos inseguros e trapalhões, já agora. As neo-princesas também gostam deles assim e há emprego para todos no mundo encantado da animação.

19 junho 2014

post it

Quando tiveres trabalho para fazer, gralha, ninguém estiver a controlar o ritmo de feitura do mesmo, e não conseguires obrigar os dedos a pressionar as teclas do computador no sentido do cumprimento do teu dever,

Coisas que (infelizmente já) NÃO resultam:
1. Apelar ao teu sentido de ética (que foi de férias para parte incerta);
2. Estabelecer horários (começas mesmo, mesmo a trabalhar às X horas);
3. Prometer recompensas (o quê?);
4. Apelar à culpa (tanta gente sem trabalho e tu no baldanço);
5. Ver vídeos deprimentes no YouTube (tentando trabalhar para esquecer as misérias alheias);
6. Ver vídeos engraçados no YouTube (para animar e dar energia - esta nunca resultou, quem é que eu estou a enganar?)
7. Visualizar-te em pânico no fim do prazo e com tudo para fazer.

Coisas que AINDA resultam.
1. Beber um café (a vesícula que se aguente);
2. Mudar as agulhas do que se está a fazer (em vez de rever, traduz; em vez de traduzir, edita; em vez de preencher bases de dados, pesquisa imagens).

E agora vai lá trabalhar, que vir para aqui escrever em hora de expediente não constitui o terceiro ponto da lista acima incluída.

18 junho 2014

ordene as seguintes prioridades

Semanas de praia com a escola. Terceiro dia, terceira seca de quarenta e cinco minutos em relação à hora prevista de saída. O que devemos privilegiar de amanhã em diante?

1) pontualidade - continuar portanto a dar a alvorada a horas ramelosas, independentemente do que temos de esperar, dando o exemplo;

2) saúde mental - acordar toda a gente muito mais tarde, ignorar os horários estipulados e evitar birras de sono antes do jantar;

3) descontracção - acordar cedo mas desligar o barómetro interno, deixar a coisa fluir, se os dentes forem mal lavados, paciência, se o autocarro esperar por nós, azarecos.

Evidentemente que escolheria a terceira via se pudesse, meus amigos. Mas isto de terceiras vias, tal como na política, só funciona no plano ideal. Ou se eu me encharcasse de ansiolíticos logo pela fresquinha.

17 junho 2014

se pudesse escolher-vos

Se a partir de agora pudesse seleccionar as pessoas que ainda me falta conhecer, aquelas com quem vale a pena criar novas relações, o casting seria breve e descomplicado. Isto de levarmos a vida a acontecerem-nos pessoas ao calhas e a eliminarmos – a custo – ligações pela negativa pode ser muito cansativo e traumatizante. Se escolhemos curso, casa, carreira (?) por aquilo que nos agrada, como seria bom poder filtrar toda a gente com quem lidamos por semelhantes critérios, em vez de passarmos tanto tempo a listar o que há de negativo nas personagens que involuntariamente preenchem boa parte do enredo da nossa biografia.
Entrem os candidatos: são inteligentes e criativos sem se levarem demasiado a sério? Fiquem para jantar. Donos da vossa individualidade mas imunes ao cântico de sereia da misantropia? Aceitem mais um copo de vinho com a sobremesa. Já tiveram mais certezas, mas aquelas que mantêm são estimadas e defendidas com firmeza? Como tomam o café? Têm paciência e sentido de humor para tratar com cortesia as nossas diferenças? Pois, voltem sempre.

16 junho 2014

os consensuais

O consensual é um ser que se esforça constantemente por agradar a todos. O que é diferente de agradar constantemente a todos, feito impossível, pelo que o consensual serpenteia entre indivíduos e grupos agradabilizáveis, numa gestão cuidada de expectativas. O consensual é incansável no rebatimento de pequenas discordâncias que possam surgir. Domina o golpe de rins nas posições tomadas, sempre moderadas, e estica-se para chegar a todo o lado. O consensual não tem uma opinião; tem tantas quantas sejam necessárias para não desiludir ninguém. O consensual é galanteador, suave nas palavras, delicado nos gestos. O consensual tem por ambição fazer carreira política, e lá chegará se conhecer as pessoas certas (e conseguir convencê-las que, no meio de tanto consenso, tem um fraquinho secreto por elas). O consensual tem o sonho de ter um blogue que consiga para cima de imensas visualizações. O problema do consensual é que ainda não percebeu que o público precisa de sentir que é especial e cansa-se depressa de ouvir as mesmas banalidades mornas. O público quer distrair-se mas também procura quem o desafie, choque, provoque, confronte com autenticidade, ainda que isso arrisque perda de simpatia e audiência. É por isso que o consensual nunca será excepcional, por muito que se ponha em bicos de pés e acompanhe à hora certa cada tema quente da actualidade mediática.

12 junho 2014

elogio à professora

Findo o ano lectivo, o reconhecimento devido: gosto muito da professora do meu filho. Gosto que seja exigente mas não promova o espírito competitivo a todo o custo. Gosto que conheça cada um dos seus meninos. Gosto que faça deles seus meninos. Gosto que insista na abordagem pela positiva. Gosto que seja gira e confiante. Gosto que seja educada e que insista na importância da boa educação. Gosto que seja carinhosa com o meu filho e que puxe por ele, incutindo-lhe responsabilidade, deixando-me na confortável posição de acompanhar-lhe os estudos a boa distância, (para o ano logo falamos, já sei). Gosto que seja apaixonada viajante e tenha apoiado com entusiasmo o baldanço de um aluno a meio do ano, porque há valores mais altos que se levantam. Gosto que só marque trabalhos de casa ao fim de semana e que os esfalfe durante as aulas. Gosto que esteja no ensino público e que o defenda, com qualidade. Gosto que se preocupe, que invista, que invente, que dê o litro e que admita que agora precisa de férias, como todos nós. Graças a Deus por ter colocado esta pessoa no caminho do meu filho durante estes anos tão importantes para a sua formação académica e pessoal.

11 junho 2014

à moda antiga

Diz a Rita que andam a atacar o feedly (patifes! bandidos!). De modo que tenho curiosidade em saber quem chega aqui hoje, pelo bom velho método do motor de busca e do preenchimento à pata da hiperligação deste blogue. Só há de ser gente que me estima, que teve genuínas saudades minhas neste feriado. E não aquela raça frenética sempre à caça do último bitaite alheio. Tipo eu.

10 junho 2014

a parcimónia na reacção

Não é novidade nenhuma dizer que há alguma coisa de muito português, portuguezinho até, na expressão moderada de humores e de amores. É isso e aquela coisa de nuestros hermanos aclamarem a tourada de morte, enquanto nós disfarçarmos a chacina com uns volteios a cavalo e sisudas pegas de caras. Aquilo que me desperta a curiosidade são as diferenças individuais, e não as (supostamente?) culturais na forma como reagimos, nas sentenças que proferimos.
Por que é que há pessoas que, gostando muito de um livro, lhe dão cinco estrelas no Goodreads, enquanto outras, reconhecendo apreciação semelhante, não dispensam mais de três? O que está por trás da esferográfica da professora que caligrafa um Satisfaz -, ao passo que a colega avalia o mesmo trabalho com um Não Satisfaz +? Não se trata do princípio do copo meio cheio ou meio vazio, que não faltam por aí optimistas avarentos nem pessimistas generosos. É um prazer na emoção do gostar, em si, que toca a uns mais do que a outros. E o inverso, um gosto perverso pela proclamação de ultrajes e desilusões, combustível de discussões apetitosas e confrontos mais ou menos amigáveis. Eu, exagerada, me confesso. Deve haver muita imaturidade e ignorância nas minhas reacções excessivas. Ainda assim, entre o apatetado entusiasmo juvenil e o sábio comedimento ancião, deixem-me cá dar mais umas voltas de montanha russa enquanto o permitir o vigor do miocárdio.

limpezas de primavera

É muito mais fácil esvaziar roupeiros, esfregar portadas, separar roupa em caixotes e tirar dedadas de paredes do que dar conta da desarrumação que vai cá dentro de nós. De esfregão em riste, alguidar a jeito, começa-se numa ponta e termina-se na outra, com os cabelinhos húmidos colados à testa e a satisfação do trabalho concluído. As ideias de aranha, elásticas e resistentes, nem sabemos bem a que gavetas da memória se prendem. Há muito pó varrido para debaixo dos tapetes com que reconfortamos os nossos passos incertos. Acumula-se o cotão por desleixo, é certo, mas muitas vezes mais por medo de descobrir a nossa verdadeira cara reflectida nas superfícies devidamente polidas. A porcaria familiar é a nossa porcaria, ainda assim. A novidade do asseio interior pode ser paralisante.

09 junho 2014

outros maluquinhos como eu

Tal como o Lourenço Bray, também não costumo ser grande adepta de correr em grupo. Actividades em grupo, aliás, só as estritamente necessárias*. Mas há muito tempo que andava com vontade de experimentar correr em trilhos e estava fora de questão aventurar-me por esses montes e florestas fora sem guia. Tenho um sentido de orientação colombiano – por referência ao navegador genovês e não à ratazana com asas – e dois filhos para criar, não posso dar-me ao luxo de desaparecer do mapa até que uma equipa de salvamento vá dar comigo a tentar sobreviver à base de pinhões e bolotas. Mas divago, a iniciação ao trail tinha de ser com pessoal que percebesse do assunto. Madrugadores, como eu. E, de preferência, que tivessem um ritmo semelhante ao meu. Aqui estava a maior dificuldade: toda a gente que conheço corre muito mais devagar ou muito mais depressa do que eu, onde andam as minhas almas gémeas da passada?
Não é no grupo dos Loucos Trail Running, isso descobri este fim-de-semana. Aquilo é gente com a massa gorda de um talo de couve, o instinto de uma cabra-montês e a resistência de um camelo mongol. Felizmente também têm o espírito comunitário de uma família de elefantes, não deixando ninguém ficar para trás, e sobretudo abundantes doses de sentido de humor. Foi assim que, entre incentivos e provocações, piadolas e queixumes, lá fomos trepando e destrepando as colinas de Lisboa. Que maravilhoso nascer do dia que estava na Penha de França, na Graça, em S. Vicente de Fora, em Alfama, no jardim do Torel. E em tantos outros becos, ruelas e escadarias com cheirinho a sardinha assada. Não sei é dizer-vos quais porque, entre a desorientação e a desoxigenação derivado do sangue estar a ser todo chamado de urgência aos gémeos, fiquei mais baralhada do que na noite de Santo António. Venham mais treinos destes.

*Agora que penso nisso, os únicos momentos comunitários que aprecio são a missa e a manifestação. Se reflectirmos bem sobre o assunto, têm um fundamento muito semelhante.

06 junho 2014

não me dirijam a palavra

Discuti com toda a gente. Já marchou meio pacote de amêndoas de chocolate. Libertei dois palavrões cabeludos. Pedi para ir para casa, e não me deixaram, enrolar-me na cama a ver filmes. Isto hoje só lá vai quando for amanhã.

05 junho 2014

a face oculta da mãe

Alguns comentários a este post ficaram a debicar-me na consciência materna. Que valente embuste que sou enquanto educadora. Por um lado, insisto com fervor fundamentalista na importância da verdade. Se os meus filhos me perguntam, eu respondo. Sem me esquivar, sem desculpas, no devido formato adequado à idade. Por outro lado, não me dou a conhecer na totalidade. Não sendo doce, adoço-me. Escasseando a paciência, modero com esforço palavras e reacções. Não é que aspire a ser a mãe perfeita mas quero dar-lhes o meu melhor.
Claro que já me viram chorar. Não lhes escondo zangas nem irritações que precisam de escapar com urgência. Mas não me imaginam mesquinhez, maldade ou frieza. E sabe Deus que também tenho disso em boas doses. Eles acreditam piamente na minha essência compassiva e nem desconfiam do lado retorcido, das coisas mal resolvidas e do fundo mais negro, ausentes dos desenhos em que me retratam de vestidos coloridos, caracóis esvoaçantes e um sorriso a toda a prova. Suponho que isto de ser mãe tem sempre a sua dose de hipocrisia – quem nunca ofereceu colheradas de puré de legumes com pescada, fazendo uma refeição à parte para si, que atire a primeira pedra. Dê-se o eclipse na medida certa e para benefício de todas as partes envolvidas. Que seja por amor, não por insegurança nem por ideais socialmente impostos.

04 junho 2014

o dom da invisibilidade

Estou a rever uma tese de um eminente escritor nacional. Vigio o cumprimento de normas e aponto, com zelo e discrição de governanta, gralhas e pequenos deslizes na ortografia. Cabe-me assegurar que tudo está imaculado e irrepreensível no que se refere à forma. A minha missão é pois desaparecer. Engomar com descrição servil uma peça de tecido delicado, eliminando vincos e devolvendo-a ao autor sem tropeços formais que corrompam o brilho do conteúdo. Depois saio de cena com a satisfação de um trabalho tão esmerado que se torna imperceptível.

03 junho 2014

e tu, gralha, és mais adepta do fofinhismo ou da palmatória?

Claro que ninguém se declara a favor destas posições extremas. E também já aprendi que aquilo que é válido hoje pode deixar de sê-lo amanhã. Mas então, onde é que me situo no meio desta discussão pedoparadigmática?
Eu castigo. Se se portam deliberadamente mal, ponho-os de castigo (é raro ser preciso). Deixar cair uma embalagem de iogurte não é portar mal, é ser criança. Despejar o iogurte na cabeça do irmão só é portar mal se não se tratar de uma guerra de comida na banheira, devidamente autorizada.
Eu reforço positivamente. Todos os dias. Em diferentes circunstâncias. Não poupo elogios, mostro-lhes que acredito neles, no melhor deles.
Eu passo-me (ocasionalmente). Nessas alturas, grito, ainda que o evite. E já distribuí meia dúzia de palmadas, quando a má criação foi demais.
Eu mimo. Muito. Ponto final.
Eu sei que não sou perfeita mas sou o exemplo. Quando ouço o mais velho reproduzir argumentos e tons de voz que uso, apercebo-me de como cada gesto nosso não cai em saco roto. Por isso me fundamento na verdade, na simplicidade, no amor, na consciência da imperfeição que se vai aperfeiçoando. E o resto vai-se improvisando.

02 junho 2014

apetecia-me voltar a usar o cabelo assim


Livrar-me dos caracóis, apanhar sol na nuca. Depois concedo que, provavelmente, o que queria era livrar-me do peso das responsabilidades de adulta, viver para sempre em férias grandes, trazer areia para casa e ter quem me curasse os escaldões com mimo e creme Nívea.
Pensando bem, quero a vida dos meus filhos. Está decidido, que lhes cresçam a eles os cabelos. A minha infância ficou bem completa, passo-lhes o testemunho. Já a adolescência, onde é que está o botão para desligar?

E depois se fico a parecer aquelas senhoras que «já não têm idade» para usar cabelo comprido? Pior, e se começam a achar que eu já não me esforço, já não invisto em mim, que relaxei? Como é que um post sobre penteados descamba na revelação do que parece ser uma identidade feminina hesitante? Porque, não, estas questões não estão resolvidas, nem sequer na cabeça das mulheres.