30 setembro 2014
mulheres a valer mesmo a valer
Ou homens, aliás. Não são aqueles que têm a minha vida fácil em que opto por acordar mais cedo ou mais tarde, o que como e o que visto aos meus filhos. Vida muito fácil e por vezes distraída disso. Até reparar que uma encomenda de livros que faço sem pensar duas vezes antes de clicar no botão do checkout é uma decisão custosa para outras pessoas mesmo ao meu lado. Que se levantam de madrugada mas é para apanhar os dois autocarros até ao trabalho. As penas dos outros não servem para me aligeirar as queixinhas, é claro. Os outros sofrem e triunfam alheios ao meu andamento. Têm a sua realidade, eu tenho a minha, diferente por muitas razões, que ainda assim não deixa de alargar-me um pouco a perspectiva quando já ando com a cabeça completamente enfiada num sítio que eu cá sei.
29 setembro 2014
tutoriais de maquilhagem para mulheres a valer
Não devia estar a partilhar isto aqui convosco, correndo o risco de ver inundado este nicho de mercado, mas acho que acabei de ter uma ideia genial. No mínimo brilhante. Estão a ver aqueles vídeos muito castiços no YouTube – e agora aproveito para reconhecer que o uso da palavra “castiço” não é inocente, já estou a valer-me das técnicas de marketing que aprendi no curso sobre comunicação em redes sociais da CEAC –, aqueles vídeos, dizia, em que há umas meninas adolescentes que ligam a câmara do portátil enquanto se arranjam para ficarem giríssimas (lá está, não sei qual é o termo que elas usam agora, só domino o vocabulário das trintaneiras)? Ora pois, se há tanta gente a subscrever canais que ensinam a disfarçar o acne e a fazer coques semi-casuais, enquanto se esmera o beicinho, por que não há de haver ainda mais público para um canal que mostra como uma mulher a sério se arranja de manhã?
É que, desculpem lá, não há grande arte em encher de pó uma testa e nariz reluzentes, aplicar um bocadinho de máscara e dar risadinhas fofinhas. O que é de mérito é passar noites em vigília a filhos doentes, não ignorar o despertador das 5h35 que nos manda ir correr à chuva, tomar duche enquanto se grita para que alguém não se esqueça das cuecas, e ainda conseguir vestir-se, pentear-se e maquilhar-se de forma a parecer um ser humano com bom aspecto. Requer muita prática. Capacidade de adaptação. E também ajuda ter sempre à mão um pacote de toalhitas para limpar as nódoas de pasta de dentes de morango que nos aterram no figurino quando já estamos atrasadas. Mas já chega de dicas gratuitas, que ainda vou ficar rica à custa disto.
É que, desculpem lá, não há grande arte em encher de pó uma testa e nariz reluzentes, aplicar um bocadinho de máscara e dar risadinhas fofinhas. O que é de mérito é passar noites em vigília a filhos doentes, não ignorar o despertador das 5h35 que nos manda ir correr à chuva, tomar duche enquanto se grita para que alguém não se esqueça das cuecas, e ainda conseguir vestir-se, pentear-se e maquilhar-se de forma a parecer um ser humano com bom aspecto. Requer muita prática. Capacidade de adaptação. E também ajuda ter sempre à mão um pacote de toalhitas para limpar as nódoas de pasta de dentes de morango que nos aterram no figurino quando já estamos atrasadas. Mas já chega de dicas gratuitas, que ainda vou ficar rica à custa disto.
26 setembro 2014
a alegria no trabalho
Nos últimos dias, tenho andado de roda de livros. Muitos livros. De arquitectura, direito, economia, inovação, sociologia, urbanismo. Com formatos diferentes, capas mais ou menos vistosas, todos eles compilando o trabalho de tanta gente que se reúne neste centro para fazer pesquisa. É bom sentir a materialização do esforço, ainda que seja uma pequena amostra do impacto do sistema de investigação e desenvolvimento nacional, tão maltratado nos últimos tempos. Às vezes, àqueles como eu que trabalham com metas distantes e resultados intangíveis, faz falta esta possibilidade de agarrar o produto de meses de esforço.
Lidar com livros também me recorda de quando trabalhava na biblioteca e desempenhava funções bem diferentes, completamente taylorizadas, medidas à peça, diariamente. Nessa altura era uma operária que classificava e arrumava, transportava carrinhos e chegava ao fim do dia com a sensação maravilhosa de ter cumprido cento e vinte porcento dos objectivos. Ou seja, não só passava os dias em absoluto silêncio, rodeada de luz poeirenta e de livros centenários, como ainda me davam a possibilidade de brincar ao Quem Consegue Etiquetar Mais Volumes Por Hora. E de extravasar a contrariedade de estar onde não queria com uma marreta de borracha, ajustando prateleiras à martelada e perturbando o estudo dos betinhos da Ivy League. Qual meditação, qual carapuça.
Lidar com livros também me recorda de quando trabalhava na biblioteca e desempenhava funções bem diferentes, completamente taylorizadas, medidas à peça, diariamente. Nessa altura era uma operária que classificava e arrumava, transportava carrinhos e chegava ao fim do dia com a sensação maravilhosa de ter cumprido cento e vinte porcento dos objectivos. Ou seja, não só passava os dias em absoluto silêncio, rodeada de luz poeirenta e de livros centenários, como ainda me davam a possibilidade de brincar ao Quem Consegue Etiquetar Mais Volumes Por Hora. E de extravasar a contrariedade de estar onde não queria com uma marreta de borracha, ajustando prateleiras à martelada e perturbando o estudo dos betinhos da Ivy League. Qual meditação, qual carapuça.
Créditos da imagem: Mark Anderson, Andertoons.
25 setembro 2014
o início oficioso do ano lectivo
Nenhum a chorar quando fica na escola.
O caminho cheio de folhas húmidas e mal-cheirosas.
Eles a molhar os biscoitos no leite. Devagarinho.
A coberta na cama e o chá aquecido.
Este ano não há primeiras chuvas - visto que nunca se ausentaram - mas já chegou o primeiro ranho.
Por muito que me esforce em focar-me nos detalhes ternurentos, faço em simultâneo a lista mental para a farmácia: soro, loção para os piolhos, neo-sinefrina.
O caminho cheio de folhas húmidas e mal-cheirosas.
Eles a molhar os biscoitos no leite. Devagarinho.
A coberta na cama e o chá aquecido.
Este ano não há primeiras chuvas - visto que nunca se ausentaram - mas já chegou o primeiro ranho.
Por muito que me esforce em focar-me nos detalhes ternurentos, faço em simultâneo a lista mental para a farmácia: soro, loção para os piolhos, neo-sinefrina.
24 setembro 2014
a maldição do impinging
Se em todas as situações da vida fossemos constantemente assediados para mudar como o somos pelos fornecedores de serviços de televisão, comunicações e dados, desconfio que a civilização estaria em risco de colapsar.
Quer continuar a usar essas botas? Mesmo que lhe sirvam bem, estas aqui são muito mais resistentes e poupam-lhe imenso em meias-solas.
Acha que esse emprego lhe convém? Não pagamos mais mas as nossas fardas são muito bonitas, oferecemos-lhe uma esfregona nova a cada dois meses e a máquina de café é daquelas de cápsula.
E já pensou mudar de marido? Certo, esse já está macio e confortável do uso mas não será preferível apostar num modelo actual, com mais memória, que suporta novas aplicações como a capacidade de meter a roupa suja no cesto e um medidor de níveis hormonais por bluetooth? O quê, minha senhora?, não compreendi a sua pergunta. Se é compatível com o sistema operativo da senhora, que é de 1979? Bom, é capaz de ser complicado mas também lhe posso vender aqui um dispositivo muito jeitoso que lhe permite aumentar a capacidade de processamento. E, sem custos adicionais, uma finíssima capa em pele, design italiano, que a deixará como nova. Não desligue, minha senhora! Quanto é que está a pagar, se não é indiscrição? Nós fazemos-lhe um desconto, sem período de fidelização. Seja como for, o meu colega da concorrência vai ligar-lhe amanhã a cobrir a minha proposta.
Quer continuar a usar essas botas? Mesmo que lhe sirvam bem, estas aqui são muito mais resistentes e poupam-lhe imenso em meias-solas.
Acha que esse emprego lhe convém? Não pagamos mais mas as nossas fardas são muito bonitas, oferecemos-lhe uma esfregona nova a cada dois meses e a máquina de café é daquelas de cápsula.
E já pensou mudar de marido? Certo, esse já está macio e confortável do uso mas não será preferível apostar num modelo actual, com mais memória, que suporta novas aplicações como a capacidade de meter a roupa suja no cesto e um medidor de níveis hormonais por bluetooth? O quê, minha senhora?, não compreendi a sua pergunta. Se é compatível com o sistema operativo da senhora, que é de 1979? Bom, é capaz de ser complicado mas também lhe posso vender aqui um dispositivo muito jeitoso que lhe permite aumentar a capacidade de processamento. E, sem custos adicionais, uma finíssima capa em pele, design italiano, que a deixará como nova. Não desligue, minha senhora! Quanto é que está a pagar, se não é indiscrição? Nós fazemos-lhe um desconto, sem período de fidelização. Seja como for, o meu colega da concorrência vai ligar-lhe amanhã a cobrir a minha proposta.
23 setembro 2014
reis na barriga
Estou um bocadinho cansada das pessoas que confundem bondade com burrice, simpatia com falta de espírito analítico. Sei que há determinadas características que passaram de moda porque parecem contrariar a urgência do individualismo e da ambição umbiguista, mas era bom que quem se agarra à bóia do cinismo e da crítica constante percebesse que do outro lado da conversa pode estar alguém que sorri em silêncio porque rejeita até a atitude paternalista de tentar mostrar ao outro, com bons modos, que pode estar enganado.
22 setembro 2014
aceito sugestões. mas com pouco sangue, já agora
Acabámos ontem de ver o True Detective. Estive à espera de ser conquistada até ao último episódio mas, embora reconheça que os moços vão bem no (muito batido) papel de agentes com problemas existenciais e sotaque intransponível, não me caiu no goto. Ou seja, se calhar não valia a pena ter passado por aqueles longos minutos de sofrimento e suspense, e arranjar uma tal camada de nervos que fiquei cheia de vontade de voltar a ficar sem luz na madrugada monsantina.
E então, o que é que vale a pena nesta nova temporada de séries? Quero ver se apanho o The Leftovers, que deve ser mais uma para durar só uma temporada mas afaga as minhas ânsias pós-apocalípticas. O Manhattan também merece uma espreitadela, pode ser que seja um bocadinho menos forçado do que o The Americans no que diz respeito à conciliação entre factos históricos e a credibilidade do enredo ficcional. Espero que a segunda temporada do Les Revenants comece de uma vez por todas e a ver se me lembro de ir procurar o The Knick. Lá terei também de picar o ponto, um bocadinho contrariada, no Mad Men e no Shameless. Senhores argumentistas, não quero pressionar-vos mas já criavam qualquer coisa nova bem sumarenta, heim?
E então, o que é que vale a pena nesta nova temporada de séries? Quero ver se apanho o The Leftovers, que deve ser mais uma para durar só uma temporada mas afaga as minhas ânsias pós-apocalípticas. O Manhattan também merece uma espreitadela, pode ser que seja um bocadinho menos forçado do que o The Americans no que diz respeito à conciliação entre factos históricos e a credibilidade do enredo ficcional. Espero que a segunda temporada do Les Revenants comece de uma vez por todas e a ver se me lembro de ir procurar o The Knick. Lá terei também de picar o ponto, um bocadinho contrariada, no Mad Men e no Shameless. Senhores argumentistas, não quero pressionar-vos mas já criavam qualquer coisa nova bem sumarenta, heim?
21 setembro 2014
alqueva
Prometo solenemente não voltar a afirmar que este ano não houve Verão. Não durou mais de 48 horas, mas não faltou nada:
Também se nadou, comeu e bebeu muito bem, mas era só o que faltava, estar a pôr aqui fotos minhas em bikini a deitar abaixo um cozidinho de grão (e tudo o resto).
Crianças a desempenhar funções para as quais não estão devidamente habilitadas
Momentos de cumplicidade intergeracional (n.b., o único animal capturado nesta cena foi um tio de 80 quilos que saltou de dentro de água)
Recriação de cenas cinematográficas extremamente pirosas
Nasceres do sol aguarélicos
E até a imperativa imagem dos pezinhos de molho
Também se nadou, comeu e bebeu muito bem, mas era só o que faltava, estar a pôr aqui fotos minhas em bikini a deitar abaixo um cozidinho de grão (e tudo o resto).
18 setembro 2014
sublimação
Admito que prezo com paixão sanguinária a minha liberdade. Será porventura dos traços que mais marcam a minha personalidade. Apesar de ser uma filha muito tardia do 25 de Abril – ainda andei de jardineiras castanhas e camisolas de gola alta amarelas mas nunca fui às cavalitas a manifestações do 1º de Maio – faço parte desta geração de herdeiros inconsequentes da liberdade. Ela não é uma conquista, é mais uma evidência.
Os da minha idade puderam escolher curso, namorados, profissões, trabalhos, onde queremos viver, com quem queremos viver, se e quando temos filhos, que amigos fazemos e mantemos. Mas é tão ilusória esta noção absoluta de liberdade. Todas as escolhas são condicionadas pelo nosso contexto particular e volúvel. Num dia somos a jovem universitária com um futuro promissor, no outro somos a mãe divorciada que não consegue esticar a carteira no mês de Setembro.
Liberdade é o tanas. Liberdade são breves momentos em que vimos à tona numa vida cuja maior fatalidade pode nem ser a hora do fim que, já agora, também gostaríamos de poder escolher.
Mesmo assim corremos atrás deste direito inalienável que é a liberdade. Chegará talvez o dia em que esta sede de controlo nos fará querer dominar em absoluto o nosso tempo e o nosso espaço, as pessoas que lá deixamos entrar, até nos sentirmos absolutamente livres, no topo da montanha. E completamente sozinhos, porque isto de encarar grandes desafios em conjunto implica conciliar ritmos e vontades diversas. Livres, sozinhos e tão leves que poderemos dissolver-nos no ar.
Os da minha idade puderam escolher curso, namorados, profissões, trabalhos, onde queremos viver, com quem queremos viver, se e quando temos filhos, que amigos fazemos e mantemos. Mas é tão ilusória esta noção absoluta de liberdade. Todas as escolhas são condicionadas pelo nosso contexto particular e volúvel. Num dia somos a jovem universitária com um futuro promissor, no outro somos a mãe divorciada que não consegue esticar a carteira no mês de Setembro.
Liberdade é o tanas. Liberdade são breves momentos em que vimos à tona numa vida cuja maior fatalidade pode nem ser a hora do fim que, já agora, também gostaríamos de poder escolher.
Mesmo assim corremos atrás deste direito inalienável que é a liberdade. Chegará talvez o dia em que esta sede de controlo nos fará querer dominar em absoluto o nosso tempo e o nosso espaço, as pessoas que lá deixamos entrar, até nos sentirmos absolutamente livres, no topo da montanha. E completamente sozinhos, porque isto de encarar grandes desafios em conjunto implica conciliar ritmos e vontades diversas. Livres, sozinhos e tão leves que poderemos dissolver-nos no ar.
17 setembro 2014
desigualdade de género
Esqueçam os
tiques, os maneirismos, os hemisférios cerebrais, as aptidões para as
actividades físicas, as apetências para os desarranjos emocionais, as piadas, as
teorias e os manifestos: aquilo que distingue os homens das mulheres é que
estas invejam a relação que os homens têm entre si enquanto os homens se estão
marimbando lá para essa coisa insondável que são as amizades femininas.
16 setembro 2014
como se não bastassem os genes
Todo o tempo que passamos com os nossos filhos é determinante para as pessoas que se tornam. Nada lhes passa ao lado, aquelas esponjinhas têm sempre as antenas no ar. Depois, com aquele jeito atabalhoado de nos amarem e admirarem, acabam por replicar comportamentos. Pelo menos enquanto não chega a revolta da adolescência, o que fazemos está perfeito. Se não parece perfeito, o defeito há de ser deles, filhos, que não compreendem. Um livro que li recentemente, A Arte de Chorar em Coro, chamou-me mais uma vez a atenção para isso. Mas nem era preciso entrar no campo da ficção: vejo a forma como os meus filhos copiam o meu tom de voz sarcástico, ou uma resposta seca do pai, e encolho-me. Nem tudo é mau, noto que também absorvem intuitivamente as atitudes de generosidade e de paciência. A responsabilidade parental vai tanto além das garantias básicas de amor, segurança, educação. Sem darmos por isso, estamos a criar personagens de uma narrativa própria de cada família e a dar o tom para a acção em todos os outros cenários da vida. Para o bem e para o mal.
15 setembro 2014
até ao fim do coração e mais além
No dia em que se assinalam os vinte e cinco anos desde que perdi o meu querido Avô para aquela doença da qual ninguém gosta de dizer o nome, aquece-me o coração recordar a vida de quem lutou contra ela com uma nobreza inigualável e marcou muitos dos que tiveram a sorte de com ela se cruzar. Ninguém como a Ana Casaca para pegar nessa crua jornada, tratando-a com a honestidade e doçura que merece e transpondo-a para o seu novo livro Viagem ao ao Fim do Coração. Vemo-nos hoje no lançamento, meninas.
13 setembro 2014
se tivessemos lá ficado
Mais uma carta no baralho dos what ifs desta vida: e se, há três anos atrás, tivéssemos ficado nos EUA em vez de regressar a Portugal?
É muito difícil adivinhar onde estaríamos, na verdade, porque há muita mobilidade no meio da investigação pós-doc e não é natural que continuássemos em Princeton. Talvez tivéssemos ido suportar os ventos gelados do Illinois, talvez estivéssemos a torrar num laboratório ultra-secreto do Arizona, quem sabe?
Se prolongássemos a estadia na Costa Leste, pelo menos teríamos o prazer de quatro estações do ano bem definidas. Os rapazes ja teriam um cerrado sotaque nova-jersiano (que felizmente perdemos, uff!) e já saberiam as regras do baseball. Brincaríamos na neve no Inverno, apanharíamos frutos silvestres na Primavera, ouviríamos o coaxar das rãs nas noites húmidas de Verão e participaríamos em coloridas hayrides no Outono. A nossa vida social consistiria em playdates, festas com eminentes e excêntricos cientistas e muitas idas ao mall. A vida familiar seria feita exclusivamente a quatro, com o Skype a manter uma ténue linha de contacto com avós, tios e primos.
Profissionalmente, não faço a mínima ideia do que poderia estar a fazer. Enquanto lá estive, trabalhei numa agência de apoio a pessoas portadoras de deficiência, numa empresa de desenvolvimento de sustentabilidade energética, e numa gigante biblioteca universitária. Tendo um mestrado e fazendo boa figura nas entrevistas, o céu é o limite no que toca à empregabilidade naquela zona, sobretudo agora que já passou o pior da crise por lá. Com horários muito menos tardios, não sei onde encaixaria o meu tempo, aquele que uso para ler e para o desporto, pelo que é possível que estivesse a ficar uma pequena matrona yankee. Se calhar até já tinha mais uma filha e começava a sonhar levá-la aos concursos de beleza para crianças. Entretanto, o mais velho andaria numa elementary school pública um bocado reles, porque não teríamos como pagar uma privada melhorzinha, e o mais novo estaria a apanhar com blocks na cabeça, cortesia dos colegas do kindergarten, que quando se portam mal são amavelmente convidados a ler um livro em vez de serem repreendidos. Provavelmente teríamos uma pequena casa com jardim onde eu me dedicaria a massacrar algumas plantas com a minha inépcia floral nos reduzidíssimos tempos livres, enquanto tentava acumular trabalho, três crianças e tarefas domésticas nas muitas ausências de um marido sempre com conferências e seminários em algum ponto distante do planeta. Bom, já estou deprimida que chegue com a ideia. Bolas, ainda bem que voltámos.
É muito difícil adivinhar onde estaríamos, na verdade, porque há muita mobilidade no meio da investigação pós-doc e não é natural que continuássemos em Princeton. Talvez tivéssemos ido suportar os ventos gelados do Illinois, talvez estivéssemos a torrar num laboratório ultra-secreto do Arizona, quem sabe?
Se prolongássemos a estadia na Costa Leste, pelo menos teríamos o prazer de quatro estações do ano bem definidas. Os rapazes ja teriam um cerrado sotaque nova-jersiano (que felizmente perdemos, uff!) e já saberiam as regras do baseball. Brincaríamos na neve no Inverno, apanharíamos frutos silvestres na Primavera, ouviríamos o coaxar das rãs nas noites húmidas de Verão e participaríamos em coloridas hayrides no Outono. A nossa vida social consistiria em playdates, festas com eminentes e excêntricos cientistas e muitas idas ao mall. A vida familiar seria feita exclusivamente a quatro, com o Skype a manter uma ténue linha de contacto com avós, tios e primos.
Profissionalmente, não faço a mínima ideia do que poderia estar a fazer. Enquanto lá estive, trabalhei numa agência de apoio a pessoas portadoras de deficiência, numa empresa de desenvolvimento de sustentabilidade energética, e numa gigante biblioteca universitária. Tendo um mestrado e fazendo boa figura nas entrevistas, o céu é o limite no que toca à empregabilidade naquela zona, sobretudo agora que já passou o pior da crise por lá. Com horários muito menos tardios, não sei onde encaixaria o meu tempo, aquele que uso para ler e para o desporto, pelo que é possível que estivesse a ficar uma pequena matrona yankee. Se calhar até já tinha mais uma filha e começava a sonhar levá-la aos concursos de beleza para crianças. Entretanto, o mais velho andaria numa elementary school pública um bocado reles, porque não teríamos como pagar uma privada melhorzinha, e o mais novo estaria a apanhar com blocks na cabeça, cortesia dos colegas do kindergarten, que quando se portam mal são amavelmente convidados a ler um livro em vez de serem repreendidos. Provavelmente teríamos uma pequena casa com jardim onde eu me dedicaria a massacrar algumas plantas com a minha inépcia floral nos reduzidíssimos tempos livres, enquanto tentava acumular trabalho, três crianças e tarefas domésticas nas muitas ausências de um marido sempre com conferências e seminários em algum ponto distante do planeta. Bom, já estou deprimida que chegue com a ideia. Bolas, ainda bem que voltámos.
12 setembro 2014
contra a glorificação do sorriso
Encaremos as coisas com frontalidade: às vezes estamos em baixo. Caramba, e não há problema nenhum nisso. Por que é que nos havemos de sentir obrigados a dar a volta por cima a todo o instante? Estou cansada desta urgência de encontrar uma espécie de felicidade a todo o custo. Quero acarinhar todos os meus estados de alma, quero conseguir respeitar os desânimos da mesma forma que me deixo embalar pelos momentos de alegria e entusiasmo. É que o contrário é um esforço inglório e injusto. Que sentido há, suponhamos, em termos um filho sempre bem-disposto e outro com flutuações de humor, e querermos estar apenas com o primeiro? Tal como luto para acolher o que sou fisicamente, com as minhas forças e fraquezas, também quero aceitar o que sinto, como me sinto, verbalizá-lo - "hoje estou triste." E estar bem mesmo quando não estou.
11 setembro 2014
red line
Durante as férias continuo a ter filhos, marido, família alargada, actividades extra-laborais. O que muda é a intensidade do dia-a-dia. E já me tinha esquecido disso. Mentira, lembrava-me, mas desabituei-me.
Por que é que uma pessoa se envolve em tanta coisa? Dá a sensação que estou muito quietinha e começam a chover-me afazeres em catadupa. Não procuro novas ocupações. Não vou atrás de novas responsabilidades. E mesmo assim a agenda semanal começa a ficar tão preenchida que só de olhar para ela fico cansada por antecipação. Logo eu, que não sou pessoa de se cansar.
Começa o ano lectivo e penso: o que é que posso eliminar das rotinas para aligeirar os nossos dias? Tirando o trabalho e a escola, todas as outras actividades são de entrega aos outros ou de realização pessoal. Até são poucas. Talvez a solução não esteja em limpar o calendário mas em descobrir o modo de encarar tudo isto com maior leveza, com menos perfeccionismo. Se fizesse yoga mais do que uma vez por semana era capaz de ajudar só que, lá está, isso implicaria um ponto adicional na lista de afazeres.
Por que é que uma pessoa se envolve em tanta coisa? Dá a sensação que estou muito quietinha e começam a chover-me afazeres em catadupa. Não procuro novas ocupações. Não vou atrás de novas responsabilidades. E mesmo assim a agenda semanal começa a ficar tão preenchida que só de olhar para ela fico cansada por antecipação. Logo eu, que não sou pessoa de se cansar.
Começa o ano lectivo e penso: o que é que posso eliminar das rotinas para aligeirar os nossos dias? Tirando o trabalho e a escola, todas as outras actividades são de entrega aos outros ou de realização pessoal. Até são poucas. Talvez a solução não esteja em limpar o calendário mas em descobrir o modo de encarar tudo isto com maior leveza, com menos perfeccionismo. Se fizesse yoga mais do que uma vez por semana era capaz de ajudar só que, lá está, isso implicaria um ponto adicional na lista de afazeres.
10 setembro 2014
monda
Que se lixe: vou culpar o tempo também disto, do crescimento indevido de vegetação que não plantei. Só pode ser por causa da chuva constante. Na verdade, custa-me um bocado compreender por que se arrancam as ervas daninhas. Ingenuidade de quem não tem os dedos calejados pelo sacho, está claro. No meu imaginário bíblico, trigo, joio, rosas e cardos deviam poder conviver docemente, seres dotados do mesmo direito à existência, cada um com a sua beleza. Há de confirmar-me quem percebe do assunto, mas o problema está no facto de os usurpadores selvagens, apesar de belos e viçosos, estrangularem a força vital das boas sementes. Bem que gostaria de abrir o meu jardim à selvajaria, deixá-lo crescer à solta, bravo, o darwinismo que triunfasse sem dó nem piedade. Mas depois lá se ia o pão nosso de cada dia, que nos é dado hoje se fizermos por cuidar da plantação e não nos deixarmos encostar à sombra de insidiosas espécies invasoras.
09 setembro 2014
envelhecer
A velhice é uma grande trampa, desculpem lá a franqueza. Se não fosse mau, não era preciso eufemismos como a terceira idade, as peles maduras, o ocaso da vida, ou mesmo o termo “idoso”. Não sei como é que os norte-americanos ainda não se lembraram disso mas qualquer dia criam o conceito de longevity challenged person.
O meu cão está velho. Não se aguenta nas patas. Tem a boca podre e os olhos azuis das cataratas. Pouco ouve (e agora não é só quando não lhe convém) e já perdeu a dignidade de fazer chichi à macho. Dorme todo o dia e arrasta-se quando vai à rua. Do ponto de vista da dona, toda esta decadência é simplesmente triste. Faz parte da vida mas é muito injusto que o pior fique para o fim.
E se custa assistir à ruína de um animal de estimação, mais custa quando se trata das pessoas que fazem parte da nossa vida. Vê-las perder faculdades e ter noção dessa perda é uma violência. O consolo de podermos estar com elas neste tempo é pouco porque, na verdade, não podemos restituir a força, a vitalidade, ou os dons. É como estarmos a assistir a um assalto e ficarmos de lado a fazer festinhas na mão da vítima enquanto ela entrega a carteira ao bandido. Porque a velhice é muito isto: estar cada vez mais sozinho. Cada vez mais fechado no seu mundo, cavando o próprio túmulo do seu ser autónomo e funcional, cobrindo-se de recordações cada vez mais antigas. Até à infância. Envelhecemos e querem tratar-nos como crianças mesmo se olhamos para as mãos e não reconhecemos as articulações nodosas e as veias azuladas. Não sei como há tantas pessoas que descobrem a Fé quando envelhecem, no preciso momento em que lhes é feita tremenda maldade. E entristece-me um bocadinho essa Fé que brota do medo do fim, e não de uma relação de confiança que foi crescendo ao longo dos altos e baixos da vida. Bom, mas que sei eu? Se chegar a velha logo vejo se Deus não é realmente o único que ainda me ouve de verdade, sem me acenar a cabeça enquanto pensa que já não digo coisa com coisa.
O meu cão está velho. Não se aguenta nas patas. Tem a boca podre e os olhos azuis das cataratas. Pouco ouve (e agora não é só quando não lhe convém) e já perdeu a dignidade de fazer chichi à macho. Dorme todo o dia e arrasta-se quando vai à rua. Do ponto de vista da dona, toda esta decadência é simplesmente triste. Faz parte da vida mas é muito injusto que o pior fique para o fim.
E se custa assistir à ruína de um animal de estimação, mais custa quando se trata das pessoas que fazem parte da nossa vida. Vê-las perder faculdades e ter noção dessa perda é uma violência. O consolo de podermos estar com elas neste tempo é pouco porque, na verdade, não podemos restituir a força, a vitalidade, ou os dons. É como estarmos a assistir a um assalto e ficarmos de lado a fazer festinhas na mão da vítima enquanto ela entrega a carteira ao bandido. Porque a velhice é muito isto: estar cada vez mais sozinho. Cada vez mais fechado no seu mundo, cavando o próprio túmulo do seu ser autónomo e funcional, cobrindo-se de recordações cada vez mais antigas. Até à infância. Envelhecemos e querem tratar-nos como crianças mesmo se olhamos para as mãos e não reconhecemos as articulações nodosas e as veias azuladas. Não sei como há tantas pessoas que descobrem a Fé quando envelhecem, no preciso momento em que lhes é feita tremenda maldade. E entristece-me um bocadinho essa Fé que brota do medo do fim, e não de uma relação de confiança que foi crescendo ao longo dos altos e baixos da vida. Bom, mas que sei eu? Se chegar a velha logo vejo se Deus não é realmente o único que ainda me ouve de verdade, sem me acenar a cabeça enquanto pensa que já não digo coisa com coisa.
08 setembro 2014
para lá das pernas bem torneadas
Não é novidade que uma das minhas epifanias doismilecatorzianas surgiu no solo escuro e pedregoso da floresta, primeiro na Costa Rica, agora nos trilhos em que corro de madrugada. A spin-offania que daí surgiu nestes últimos dias de Verão é que vou partilhar agora convosco, minhas alminhas sedentas de vislumbres da intimidade alheia: não é só de correr nos trilhos de que gosto tanto, é do que isso faz às pessoas que o praticam.
O praticante de trail é, na verdade, um embrião: mal começa nessas lides decide logo que afinal nada abaixo do ultratrail (distâncias superiores a 42 km) chega. É, portanto, um exagerado. E um bocado bazófias, sem nunca perder a humildade. Tem sentido de sacrifício, grande espírito de camaradagem, amor à natureza, é extremamente perseverante, dedicado e, sim, tem uns glúteos jeitosos.
Então mas afinal o que é que isto tem de íntimo, gralha? É que não estou a falar de mim nem daqueles com quem me cruzo nos trilhos. Estou a falar do meu marido, que (ainda) nem sequer corre trail. Mesmo sem ter dado mais à modalidade do que algumas subidas contrariadas em Monsanto, este homem já nasceu com o espírito. Tem todas as qualidades que enunciei acima e eu ainda não me tinha apercebido da coincidência. Tantas vantagens e não me traz lama para casa. Ainda bem que o cacei.
O praticante de trail é, na verdade, um embrião: mal começa nessas lides decide logo que afinal nada abaixo do ultratrail (distâncias superiores a 42 km) chega. É, portanto, um exagerado. E um bocado bazófias, sem nunca perder a humildade. Tem sentido de sacrifício, grande espírito de camaradagem, amor à natureza, é extremamente perseverante, dedicado e, sim, tem uns glúteos jeitosos.
Então mas afinal o que é que isto tem de íntimo, gralha? É que não estou a falar de mim nem daqueles com quem me cruzo nos trilhos. Estou a falar do meu marido, que (ainda) nem sequer corre trail. Mesmo sem ter dado mais à modalidade do que algumas subidas contrariadas em Monsanto, este homem já nasceu com o espírito. Tem todas as qualidades que enunciei acima e eu ainda não me tinha apercebido da coincidência. Tantas vantagens e não me traz lama para casa. Ainda bem que o cacei.
05 setembro 2014
afinal, quem nos conhece?
Independentemente do grau de intimidade das minhas relações, ao que parece sou uma personagem dúbia. Pergunto-me se isso acontece a toda a gente. Uns acham que sou boazinha, outros que sou má; há quem me julgue politicamente de direita e quem suspeite que sou de esquerda; alguns têm-me por acelerada, outros admiram a minha calma e ponderação. Sou, na verdade, muito transparente. Não me tenho por amorfa só que já lá vão os dias em que sentia necessidade de defender à dentada as minhas convicções. E é verdade que mudo de ideias. Mas, no fundo, não deixo de ser quem sou (ja cá faltava um truísmo bonito para selar a época estival). Será que o mistério está no observado, em particular, ou veremos sempre os outros – tirando daí as devidas ilacções e perfilagens – a partir do nosso olhar em ângulo agudo, como num espelho retrovisor?
04 setembro 2014
a dor fantasma
Ouço canções lamechas. Suspiro. Passeio pelo quarto à procura de uma recordação daquele cheirinho bom deles. Não há volta a dar, sinto muito a falta dos meus filhos. Muito mais do que imaginava. Até começo a achar ternurentas as birras dos filhos dos outros, claro sintoma de senilidade. O que vale é que já falta pouco para o regresso e eles andam todos contentes a comer três calipos por dia. Uma pessoa pensa que eles estão crescidos e já não há aquela ligação simbiótica, a necessidade de contacto, de proximidade. Não nos enganemos: são nossos filhos e não deixam de fazer parte de nós.
E, sim, é muito bom ter este tempo a dois para conversas de adultos, para descontrair nas rotinas e simplesmente para estarmos só a namorar. Mas já estou habituada a que quase tudo na minha vida seja feito de doses complementares de sofrimento e gozo.
E, sim, é muito bom ter este tempo a dois para conversas de adultos, para descontrair nas rotinas e simplesmente para estarmos só a namorar. Mas já estou habituada a que quase tudo na minha vida seja feito de doses complementares de sofrimento e gozo.
02 setembro 2014
le nozze parmigiane
A queda do Império Romano foi uma das grandes desgraças da humanidade, é o que vos digo. Pensar que podia passar os dias a falar como se cantasse, a comer rosbife trufado e batatas com alecrim, viver rodeada de pessoas iluminadas por dentro, que passeiam de bicicleta e rezam em catedrais demolidoras de lindas. Ah, que tragédia. Valham-nos os amigos e a família italiana para termos desculpa paea sobrevoar os Alpes, conduzir automóveis minúsculos e fazer a sesta junto ao lago.
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