21 novembro 2025

Bode expiatório

Refastelada no sofá em frente à televisão, estava ontem a ver o Jeremy Clarkson a medir o perímetro dos testículos de alguns carneiros antes de decidir quais ia comprar para a sua quinta. Lembrei-me que hoje tinha de escrever sobre bodes. Para quem tenha curiosidade: ambas as espécies os têm de uma dimensão (25 cm) e eficiência (1 para 40) que impressionam. Mas não pensem que as respetivas ovelhas e cabras lhes ficam atrás em termos de capacidade reprodutora, de trabalho e de destruição. Este fetiche urbanita por animais de pastoreio terá várias explicações possíveis. Hoje vou deixar-vos em paz com as citações bíblicas, descansem. Bastam as características que atrás elenquei para justificar como é fácil despejarmos responsabilidades por alguma coisa que corre mal sobre os nossos semelhantes. Só aquele que podia quase ser eu pode arcar com a culpa e a consequência de um delito cometido por mim. Se esse aquele for chifrudo, cheirar mal e estiver coberto de pelo, é praticamente como se nem tivesse sido eu, mas o maligno que me tentou. Bodes expiatórios, sempre os houve, poucas coisas há mais humanas do que sacudir a água do capote.

Outras cabritas:

Apanhada na curva

Boas intenções


14 novembro 2025

Ainda estou aqui

Ainda estou aqui, sussurrou a dor de cabeça com que me deitei, na manhã seguinte. Ainda estou aqui, a pedra dentro da bota acabada de descalçar, show de equilibrismo no caminho para o trabalho. Ainda estou aqui, os residentes do Bairro do Talude, em tendas, abrigos improvisados imagino que sem recurso ao cartão dos outdoors da campanha do presidente da câmara. Também ele ainda está lá. 

Quase nunca funciona, a técnica de esperar que passe. Fingimo-nos de mortos. Entreabrimos um olho, ah!, continua o inconveniente que nos obriga a tomar uma atitude. O risco no pára-choques, porque a chapa não se cura como a pele. A desilusão com quem traiu, porque perdoamos mas não esquecemos. Nada se perde, tudo se transforma e muito se mantém por mais que o tentemos ignorar. Gosto muito do episódio contado por São Lucas em que uma viúva vai chatear um juíz para a porta de casa dele, à noite. Tanto o azucrina que ele lhe faz a vontade só para não ser importunado. Esta influencer bíblica devia ter mais seguidores mas calculo que, já na altura, as mulheres de meia idade e poucos recursos não captassem a atenção a menos que fizessem uma barulheira desgraçada. Ando a reunir coragem para fazer o mesmo mas detesto incomodar.


Ainda estão aqui também:

Apanhada na curva


12 novembro 2025

Fúrias

Enquanto me enfurecer com os meus pais, eles permanecem jovens. À mesa, ao telefone, no hall de entrada da casa deles e que nunca foi minha, a hiper-reação às piadas intolerantes, à solicitude excessiva, mantêm o sangue a pulsar nas artérias da nossa relação familiar. Mantem-me dependente, subjugada à sua superior experiência, e a eles como conhecedores do mundo, cuidadores, amparo com que posso contar. Para reconhecer que os meus pais já não são mais capazes que eu em quase tudo, teria de os ver com uma compaixão desarmante de todas as fúrias. Esse é um luxo do qual não estou preparada para abdicar.


Furibundas do Largo:

Apanhada na curva

Boas Intenções