31 julho 2014

a ilusão da facilidade

As almas mais atentas e conhecedoras do comportamento dos corvídeos blogosféricos já podem ter notado que, por aqui, anda no ar de novo a tentação de procriar. Aliás, isto é uma espécie de post anual. É sempre assim: chega o Verão com os seus dias mais leves. Os meninos crescem sem pedir licença, portam-se como anjos e nós começamos a pensar que é tudo tão lindo e tão suave que bem podíamos aumentar a carga. Como se isto de criar filhos fosse parte de um plano de treinos para a prova do Quem Quer Ter a Família Mais Ideal.

Não é.

Por muito que apeteça voltar a ter uma bola pequenina para encher de amor, um filho é uma pessoa nova que entra para a nossa vida, com tudo o que isso implica. Há sempre coração para mais. Com ginástica, até há braços e orçamento para mais – também uma tentação, a parentalidade estóica – mas o impulso animal para a sucessão dos nossos genes não pode cegar-nos. Porque chega uma altura na vida em que o que temos não precisa de ser aperfeiçoado. Porque sendo um, dois, três, quatro, dez, o que somos é bom e suficiente. Não falta ninguém*. E saber apreciá-lo, em paz, não é só um triunfo do córtex frontal sobre o bulbo raquidiano; é o melhor para todos. Mesmo que esse facto tenha de ser recordado com disciplina diária.

* Bom, numa óptica How I Met Your Motheriana, se eu sou a Robin, ele o Ted, o mais velho o Marshall e o mais novo o Barney, o nosso equilíbrio ontológico precisa de uma Lily.

30 julho 2014

bom demais para não ser partilhado

Sabem aquela sensação que temos quando estamos apaixonados, não conseguimos parar de pensar nisso e precisamos de falar a todos do nosso amor? Eu evito vir para aqui evangelizar-vos até à náusea com a conversa das corridas mas o pessoal lá em casa não tem tanta sorte. Já devem estar um bocado fartos do meu olhar esgazeado quando chego a casa de madrugada, de pernas arranhadas e ténis meio espatifados de trepar trilhos empedrados.
Só há uma solução: convertê-los. É por isso com grande excitação que vos informo que (rufar de tambores…) vou correr a minha primeira mini-maratona!
É verdade, quase um ano depois da primeira maratona, e na semana em que bati os meus recordes dos 10 quilómetros e da meia-maratona, decidi que estava na altura de sonhar com vôos mais altos e arrastar as crianças comigo para uma prova (um vai de carrinho, será que também tem direito a medalha?). Não se preocupem, enquanto eu própria não estiver mais à vontade nas corridas de montanha, não tenciono tentar bater o recorde de idade na subida ao Monte Branco.

29 julho 2014

o autor-espelho

Deves achar que és muito especial. Sabe-la toda. Com meia dúzia de parágrafos, arruínas as certezas mais elementares. E parágrafos a atirar para o sofrível, num livro pouco mais que tolerável, mesmo se descontarmos a dificuldade em traduzir-te. Um chorrilho de passarinhos e uma adolescência soturna e aborrecida (olha a novidade!) são fraco recheio para esta sanduíche de azia com que nos presenteias. Com que então a minha consciência ambiental é uma forma de atenuar a culpa que carrego nos ombros de classe média? Ai quer dizer que os objectivos que estabeleço, as metas, a procura da superação física e moral são ridículas, pequenas, inúteis? Queres convencer-me que a vida é apenas uma solitária caminhada para a morte, que toda a busca de sentido é negação dessa evidência. Ah, Jonathan Franzen, e se fosses cagar na mata?

28 julho 2014

aerofolios

As palavras são feitas de ar e andam por aí, ao dispor de todos. As histórias, pelo menos as boas histórias, são mais raras. O pior é que as palavras certas e as histórias suculentas nem sempre se cruzam para gozo da audiência. A prática pode melhorar o desempenho do músculo narrativo mas tem de haver por trás a capacidade inata de criar alguma coisa nova, mesmo, mesmo boa. Não basta embrulhar um enredo catita numa série de adjectivos. Na verdade, escapa-me completamente a lógica formal que sustenta um texto extraordinário. Só consigo descrever o efeito ao lê-lo: contrariando o peso dos caracteres na folha de papel, uma grande e bem contada história faz-nos levantar voo e entrar num mundo diferente. Tão simples, não é? Era bom, era.

25 julho 2014

ainda há primeiras vezes

Comer pitangas. Observar um filho em silêncio, de bruços sobre um livro sem bonecos. Ter a companhia de outro filho, fazendo crochet de elásticos* com aqueles dedos minúsculos. Voltarmos da escola a pé, pelo Campo Grande. Descobrir trilhos e sentir um prazer desgraçado. Fazer massa fresca. Ler Clarice Lispector. Sinto-me tão grata por este Verão e ainda nem pus um pé no mar.

* É verdade, tardou mas chegou.

24 julho 2014

dignidadezinhas

Todo o ser humano deve ser respeitado e ver garantida a sua dignidade. Esse direito a caminhar direito, nem superior nem inferior aos seus pares, é um princípio tão simples e que falha por um sem fim de razões. A par desta dignidade, todos precisamos também de ver asseguradas outras dignidadezinhas. São peças aparentemente insignificantes da infraestrutura da nossa verticalidade, porém não devem ser menosprezadas.
Concretizo: é tentador criticar a família carenciada que vai tomar o pequeno-almoço ao café da esquina enquanto nós comemos as papas de aveia preparadas de véspera. Ah, com que superioridade moral apontamos o dedo àqueles irresponsáveis, que estão mesmo a pedir brincadeira com os seus (certamente numerosos) credores enquanto caminham a direito para a obesidade do refrigerante e do rissol das 9 da manhã. Mas a verdade é que todos temos estes hábitos peculiares que nos confortam, que dão algum contentamento no meio de tudo o que nos negamos, e que fazem parte da nossa identidade. Seja a pessoa conscienciosa que não abdica dos produtos biológicos mesmo que não possa jantar fora, seja aquela que mantém a manicure irrepreensível das suas unhas de gel enquanto espreme a carteira para pagar o passe social, seja a que aspira a um determinado estatuto cultural subscrevendo anualmente a assinatura nas melhores salas de concerto do país. A penúria é sempre relativa, assim como o são os pequenos luxos.

23 julho 2014

a sério, esta é a melhor dica que vão ouvir da minha parte, pelo menos este ano

Desiludida com a ausência de soluções apresentadas ao nível dos sumos detox, resolvi seguir a sugestão da simpática leitora Susana e comprei isto.

Isto é a maior revolução para a frescura corporal desde que alguém inventou a Coca-cola com gelo e limão (coisa que já não provo há anos, mas lembro-me). A sério. Já resistiu ao teste de três dias de utilização, com direito a subidas à pressa da Av. das Forças Armadas, superação de birras matinais absurdas, camadas de nervos com pedidos esdrúxulos em contexto laboral, e até à comoção de dois piropos extremamente educados à passagem de um estaleiro de obras. E isto tudo sem as desvantagens dos anti-transpirantes. Se os fabricantes quiserem passar a ofertar-me embalagens deste produto, graças aos para aí duzentos mil novos clientes que estou a angariar-lhes à borla, estejam à vontade.

22 julho 2014

o meu incentivo à natalidade

Mexam lá no IRS, no IMI, nas licenças de parentalidade, nas taxas de esgoto e mais o diabo a quatro, não vai ser isso que pesa na fecundidade da nossa família. No que diz respeito a políticas de produção de bebés, quem tem alguma coisa a ver com o assunto são os progenitores, e ponto. E vírgula, porque há mais quem viva lá em casa e tenha a capacidade de influenciar as contas nesta matéria, com muito mais subtileza e eficácia do que as equipas de investigadores recrutadas para o efeito pelos nossos legisladores.


Apresento-vos a Robot-Rita. A Robot-Rita é a nova mana lá de casa. Para além de ter ombros e mãos largas para ajudar a pôr a mesa e transportar as compras do supermercado, a Robot-Rita tem uma voz doce e fininha (pelo menos a avaliar pelo desempenho dos seus ventríloquos). É uma irmã alegre e esfomeada, está sempre a pedir que lhe enfiem peças de lego, perdão, bolachas na boquinha. Até já tem rodas para poder acompanhar os irmãos mais velhos nas correrias pelo corredor. Ainda não percebi é quem é que se vai levantar durante a noite quando a Robot-Rita tiver febre, mas há que acreditar que uma bebé tão bem construída e estimada terá uma saúde de ferro. Ou de plástico, no mínimo.

21 julho 2014

deixar-se encontrar

Era uma mulher feita e completa. Inteiramente mulher, composta, direita. Com agenda e lembretes, notas – muitas–, prioridades e estrutura. Vivia as semanas em agitação controlada e arrancava as folhas do calendário como quem cumpria desígnios elevadíssimos. Vivia, em suma.
Tinha tempo para tudo, até para a possibilidade do amor que, como a gente sabe, só aparece quando menos se espera. Essa era a parte mais fácil: não esperava por nada. A parte mais difícil era a incerteza da hora a que haveria de chegar esse inesperado amor. Quais os seus contornos? Qual a graça do nome que passaria a ser o Nome. O rosto. A primeira entrada nas chamadas atendidas e efectuadas.
Até que o dia chegou, quase inesperadamente. Pelo menos se não contarmos a abordagem intencional no meio promissor, as palavras de uma espontaneidade planeada ao detalhe, e a indisfarçável excitação nos primeiros contactos. Feita a selecção tão natural quanto possível dos finalistas, a mulher deixou-se estar. Beliscou o aperitivo das conversas, resistiu à passagem do prato, e guardou-se para sobremesa. Toda a gente sabe que a iguaria mais sublime não se serve escarrapachada no centro da mesa, reserva-se para os convidados especiais. A mulher só não contava era com o enfartamento dos convivas diante de tanta variedade e fartura. Pêssego sumarento, passou ela fome, despercebida e intocada.

17 julho 2014

compulsões refreadas

Não comas
Não bebas mais do que a dose
Não fumes
Não grites
Sobretudo não te stresses
Não te stresses

Não compres
Não guardes
Não corras assim, depressa demais
Não pares
Não te excedas, aliás 

Não arrotes
Não ronques
Não sorvas
Não roas as unhas
Nem rates as peles

Não digas a coisa errada
Não fales tão alto
Não te vergues
Não desças do salto
Mastiga de boca fechada.

Modera lá os instintos
Controla-te, não te excites
Eleva-te
Supera os teus limites.
Mas, vê lá, não te estiques.

E não abdiques de absolutamente nada
Não sejas mal-criada
Não dês abébias nem borlas
Não te exponhas
Não mintas
No fundo, não penses, não sintas.

Com a devida vénia ao Numb dos U2.

16 julho 2014

Posso fazer uma pergunta à turma do detox?

Bebendo desses sumos verdes, cheios de legumes, sementes e óleos essenciais, que promovem a desintoxicação do organismo, notam alguma diferença ao nível do odor sovacal? É que, por princípio, até não tenho nada contra o sabor ou o aspecto desses elixires da boa digestão e da leve consciência. Estou capaz de adoptá-los por uma boa causa. Nesta altura do ano, sendo maçadora a deslocação constante à casa-de-banho para a boa velha técnica da água e do sabão, seria benéfico para todos que a refrigeração corporal começasse a evocar frescos ramos de coentros e pepino. Se juntar citronela e manjericão, será que também afasto mosquitos?

15 julho 2014

caligrafia

Escrevo com a minha letra de menina. Não a que me ensinaram na escola primária, florida e harmoniosa, nem a que tentei fabricar com rebeldia adolescente, com os As de imprensa muito artificiais, e os Ts traçados com toda a determinação de rapariga liceal. Não, escrevo com a letra de menina com que pensava no verde da juventude, letra redonda e sólida, pequena mas não minúscula, alegre e assertiva.
Os anos passaram, as notas manuscritas vão rareando com o triunfo dos teclados, e a letra esqueceu-se de crescer e acompanhar a mão. Os recados que deixo recordam-me, sem nostalgia, dessa menina que haverá sempre dentro de mim. Sai para brincar ao macaquinho do chinês com os filhos depois do jantar, espreita os periquitos na janela do escritório, e senta-se de pernas cruzadas no chão, na plataforma da estação de comboios, a ler um livro com a máxima gravidade. Ninguém cresce de verdade.

14 julho 2014

neste fim-de-semana

Estivemos finalmente a quatro. Fazia-nos falta tempo assim. Fiz o exame final de Ocean Solutions, estreei os ténis novos em Monsanto, li vários contos de seguida e lavei as paredes. Comemos coisas muito boas à beira-rio, piquenicámos com amigos ao som da Orquestra Gulbenkian, comprámos cobertores fofinhos, vimos vários episódios do Orange is the New Black e fechámos com chave de ouro, ou antes, tremoços e minis, frente à final do mundial de futebol. Continua a não me apetecer praia nem tirar fotografias, acho que é um truque sorrateiro do meu subconsciente, a tentar convencer-me que ainda tenho o Verão todo pela frente. Ou então está-me mesmo a acontecer aquilo de começar a saber apreciar o momento.

Outra preguiça é a de pôr hiperligações nisto tudo ali em cima. Mas ninguém as segue de qualquer forma, paciência.

11 julho 2014

acerca de porcarias diversas

Ora até que enfim que o governo arranjou maneira de cativar o eleitorado. Ou pelo menos todos os para aí vinte e nove eleitores do MPT, que fugiram do número 11 da Rua da Beneficiência com as cuecas verdes a arder quando inadvertidamente conquistaram um eurodeputado. O povo é muito rápido para acusar o nosso executivo de cada novo golpe de vilanagem mas, quando é para reconhecer as medidas que contribuem para o benefício geral, nem um pio. Pois eu aprovo e aplaudo esta nova estratégia win-win que é o imposto de 10 cêntimos por saco plástico. Deixem-me aliás ser mais passoscoelhista do que o Primeiro-Ministro e sugerir um aumento para 10 euros por saco plástico. Assim, não só asseguramos a solidez da retoma (aquela coisa que os senhores do BPI garantem que está a acontecer, naqueles reclames de rádio que têm agora, a chatear o BES) como ainda travamos a expansão da ilha de plástico do Pacífico. Sei que aquilo, a olho nu, não chega aos calcanhares da imponência e polémica de uma obra da Joana Vasconcelos, mas mesmo assim não cabe nem no Alqueva, quanto mais nos laguinhos do Palácio da Ajuda.
Já agora, se me permitem a ousadia de sugerir outras medidas amigas do ambiente e do erário público, será que dá para legislar mais duas coisitas? Uma que obrigue as autarquias a criar centros de recolha de resíduos orgânicos para a produção de adubo, onde os fregueses entregam o desperdício não reciclável, diminuindo a produção de lixo doméstico. Outra menos simpática, um bocadinho fascizóide até, que proíba (com coimas associadas em caso de incumprimento) os cidadãos que entram nas casas-de-banho públicas de descarregar o autoclismo mal entram no seu cubículo, indiferentes ao facto de ter saído de lá alguém há 10 segundos que descarregou o autoclismo. Sei que estes temas andam todos um bocado à volta do cocó, o que não costuma granjear muitos votos, mas pensem assim: mais impopulares do que já são é difícil. Não neguem à partida a importância que o imaginário escatológico tem no sentido de voto dos portugueses.

10 julho 2014

quintal das traseiras

Entre o canal e as casas, na zona de cheia, os jardineiros construíram colinas simétricas com a relva cortada a prumo. Os miúdos trepavam-nas e desciam a alta velocidade, a caminho da entrada para a nossa floresta, e mal dávamos por aqueles relevos artificiais de que se apropriaram as marmotas. Escavavam tocas muito bem dissimuladas e quase não se deixavam ver, desdenhosas da urbanidade dos veados que roíam a erva daninha do estacionamento das bicicletas.
Ao anoitecer, alguém ligava o coro de rãs, à desgarrada com os pica-paus. E os efeitos de luz em directo na varanda, instalações naturais de pirilampos. Jantávamos descalços e eu engolia com a sandes de atum o fim de mais um dia contrariado. O meu bebé chorava muito e metia à boca uma mãozinha de uvas-passas. Depois os trovões estalavam e a chuva escorria finalmente de alívio do calor espesso de Julho.
Na temporada dos furacões, tenho só um bocadinho de saudades de Princeton.

09 julho 2014

a mãe mula

A mochila da praia, com almoço e lanche. O saco com o equipamento de corrida e mudas de roupa. A mala do computador. A lancheira. A mochila da natação. A minha carteira. Antes de sair de casa, recolho cada um destes itens alinhados no corredor, distribuo alguma coisa pelos ombros magricelas das duas criaturas que pastoreio até ao carro, e amontôo o resto no meu lombo. Não pesa muito, o lombo está habituado. A parte mais difícil de ser mãe mula não é a tralha material que anda sempre de arrasto, é tudo aquilo de que temos de lembrar-nos e os detalhes minúsculos associados a cada coisa. O penso rápido que é preciso aplicar sobre a ferida imaginária. Quais as unhas que precisam mesmo de ser cortadas. A fruta em segunda mão que salta de um almoço de ontem para o meu lanche de hoje. Os pesadelos que precisam de ser soprados com muita força. A promessa de um segundo beijinho à noite, quando já estão adormecidos, para selar um dia cheio de areia e golpes de judo. Não precisava de mais mãos mas dava-me cá um jeitaço uma app qualquer que me fosse recordando destas miudezas tão importantes. E são só dois.

08 julho 2014

enquanto dormimos

Não há relógio a fazer tiquetaque. O pó avança sobre os livros. Os cabos dos headphones enlaçam-se traiçoeiramente. Nasce uma nova geração de moscas dos pêssegos empilhados na fruteira da cozinha. Os sapatos estão quietos no armário e a roupa seca no estendal. E eu acordo com o ataque de espirros das duas da manhã. Sempre por volta das duas da manhã. Não tenho explicação para estas alergias com hora marcada senão a apoteose do meu sono mais profundo: dormindo triunfalmente, atinjo o cume do descanso e o corpo pede esta quebra antes de iniciar a descida até à manhã. 

07 julho 2014

profissão de fé

À roda de uma mesa comprida, 13 quase desconhecidos encavalitados em cadeiras desirmanadas. Os cotovelos hesitantes sobre as toalhas de papel, olhares como insectos nervosos à procura de um sítio seguro para aterrar, traças acabadas de sair dos casulos, cílios empretecidos a preceito e sobrancelhas vigilantes. Lança-se uma palavra ao ar. A resposta é devolvida no ritmo certo, o guião do diálogo desenhando-se devagar nas idas e vindas de vozes apalpando terreno nos primeiros voos para lá da conversa de circunstância.
E logo o espaço ganha dimensões de cima, baixo e fundo. As cores intensificam-se e os cheiros acendem-se. O vinho branco sabe melhor, mais fresco, mais cósmica a ligação com o pão quente e o hummus. Os sorrisos já não se fabricam, escapam. E 13 quase desconhecidos são quase 13 conhecidos, dando-se, confiando, encostando as costas às costas da cadeira, as mãos falam depressa e escavam as afinidades que espreitavam à superfície da lama seca da cerimónia inicial. Cada um a seu jeito, oferecendo-se e confirmando-se, ouvindo o eco das suas palavras e tirando significados muito profundos de cada frase profetizada. Cada um com a satisfação de passar a ser um nome na consciência do outro, um indivíduo, uma identidade triunfando sobre o frio escuro do anonimato. Regressam a casa um pouco mais cheios de si. Um deles percebe até que, sim, o melhor ainda está para vir. Retirou pouco dos exemplos aleatórios das histórias ouvidas à distância, como se imersas no fundo de uma piscina. Confirmou, na verdade, o sentido do caminho improvisado a cada dia e prometeu ser mais como ele próprio e menos como aqueloutros, perdidos. Chegando a casa, entrou silenciosamente na cama e aproximou-se com mansidão cansada do corpo quente com quem partilha as horas vulneráveis.

04 julho 2014

o resultado de acordar às 5h30

É já ter tomado 3 pequenos-almoços às dez da manhã. E achar que não vamos deixar o ratinho à solta até à uma da tarde, que isto a vida não é para andar a sofrer à toa.
Também é chegar às sete da tarde a implorar por uma caminha. Mas vale a pena a alvorada prematura, vale tanto a pena.

03 julho 2014

promessas, leva-as o vento. literalmente

Que é isto que vejo ali a espreitar à janela, será o sol? Está a fazer-se difícil esta temporada, o malandreco. Meu amigo, vê se te deixas de hesitações. Não é só porque há que respeitar compromissos, porque há gente a fazer as malas a medo para ir de férias, ou porque a economia nacional precisa do empurrão da indústria cervejeira, é que tenho duas razões de peso para te exigir solidez na demonstração das tuas capacidades plásmicas:
1. Uma com sete anos e uma baliza dentária tão ampla que até um jogador da selecção portuguesa marcaria golo. Falta-lhe vitamina D para desenvolver as chicletes e ir a tempo de roer maçãs no Outono;
2. Outra com quatro anos que anda a arrastar as alergias de Primavera, ao ponto de ter de continuar a tomar a medicação que "é só até ao Verão" (médico dixit) e de nos ter dado uma noite daquelas. Ah, é verdade, tu não sabes o que é a noite, quanto mais daquelas. Hás de dar à luz uma supernova com vias respiratórias delicadas e depois logo conversamos.

02 julho 2014

peregrinos

pe•re•gri•na•ção

Substantivo feminino
1. Acto de peregrinar.
2. Viagem em países longínquos.
3. Viagem em romaria a lugares santos e de devoção.
4. Visita feita na intenção de homenagear um lugar onde viveu alguém que se venera.
 (cf. Priberam)

Grande parte da História humana tem sido escrita sobre o joelho, desde os tempos em que o nomadismo era a regra até aos nossos dias sedentários, em que arrancamos periodicamente as raízes à terra para procurar o que nos falta. E falta sempre alguma coisa, não é verdade?
As peregrinações configuram a própria fundação do cristianismo e estão ligadas a todas as religiões monoteístas (e não só). O conceito de espiritualidade em movimento atravessa confissões e grupos mais ou menos fechados; desde sempre, sentimo-nos mais próximos de nós e do transcendente quando nos desinstalamos, carregamos só o essencial às costas e fazemo-nos à estrada.*
Anda para aí muita gente zangada com a instituição do dia nacional do peregrino, dado o carácter laico do nosso estado. Acho bonita a homenagem aos muitos peregrinos portugueses e a quem os apoia na sua jornada. No entanto, confesso que preferia que tivessem escolhido outra data, desassociando o conceito das aparições em Fátima e evitando ampliar a cada vez maior distância entre os devotos marianos e os cépticos e críticos deste fenómeno de massas. Já agora, não contem comigo para a discussão deste tema: respeito todas as partes e manifesto a minha profunda ignorância sobre o assunto.
Partir em peregrinação é mais um dos projectos que vou adiando para quando o tempo não for um bem tão escasso e intermitente (e não o é sempre?). Agora que vou descobrindo o prazer de desacelerar, de parar para contemplar, de duvidar e confiar repetidas vezes, em mim, e nos outros, acende-se cada vez mais o desejo de entregar os meus passos ao caminho. Queira Deus e a vida que tenha a possibilidade de fazê-lo um dia.

* Já agora, para quem não tenha visto, um lindíssimo filme sobre o assunto é o The Way, escrito e realizado por Emilio Estevez, e protagonizado pelo pai deste, Martin Sheen.

01 julho 2014

noção do perigo

Desconfio que a minha capacidade de avaliar os riscos sofre da mesma hipermetropia que me afecta a visão: lá ao longe, compreendo-os e tiro-lhes as medidas com seriedade; cá ao perto, são uma mancha disforme que tendo a desvalorizar. Serei imune ao perigo, super-humana, e acharei que as coisas só acontecem aos outros? Não, nem pensar. Será que cresci apaixonada pela postura descontraída do meu pai, que sempre nos lançou para a vida a solo, com um para-quedas diminuto e um canivete suíço (enquanto a minha mãe bufava e ia amparando as quedas)? Provavelmente. O que é certo é que, perante um desafio, a minha postura natural segue o lema de que ter coragem não é não ter medo; é ter medo e fazer na mesma. Tenho medos instintivos e racionais mas, havendo caminho e pernas, avanço. Tenho passado incólume entre os pingos de chuva e isso se calhar não contribui para uma postura mais sensata e mais humilde. Os cuidados que tenho devem-se sobretudo à minha condição de mãe e de filha, não ao respeito intrínseco pela integridade do meu ser (o que está errado, é verdade).
Será que mesmo assim estou a transpor os limites do razoável quando, por exemplo, vou correr sozinha para Monsanto, de madrugada? Onde outros sussurram sobre a escuridão, o isolamento, ou as más intenções dos homens maus que perseguem as meninas indefesas, eu ouço passarinhos, o vento entre a folhagem, o silêncio dos raios de sol a penetrar a copa das árvores no cimo de uma colina. Não é preciso ler muitos policiais para saber que há azares e malfeitores. Mas isso significa que, por ser fêmea franzina, não posso dar-me ao luxo daqueles momentos de êxtase puro? Ou será que, quando deixamos que o medo nos condicione os caminhos estamos a abdicar do que há de mais precioso, a nossa liberdade?