28 fevereiro 2025

Carimbo

Está a fazer um ano que tivemos de desmanchar uma casa, o meu marido e eu. É um processo indissociável do luto, da surpresa que se prolonga no tempo, da compreensão e incompreensão em simultâneo sobre o que se passou.

Preciso de mais um parágrafo antes de retomar a ideia.

OK. Há uma música dos Divine Comedy que enumera todas as coisas que o Neil Hannon já perdeu. O ritmo angustiante da sucessão de objetos que se retira de trinta metros quadrados é silencioso, pelo contrário. Resisto a fazer a listagem. Guardo tudo na memória. Trouxe uma blusa e um carimbo. Uma tacinha indiana em forma de peixe que não sei para que serve, mas é tão bonita. Pronto, já estava a derrapar, fico por aqui. Esta dor ainda está demasiado à flor da pele para conseguir escrever mais sobre o assunto.

21 fevereiro 2025

Teias de aranha

Por que motivo sentimos um certo fascínio em torno de uma casa assombrada? Poucas coisas haverá de mais humano do que o espaço (des)habitado. Bem sei que este tema mexe comigo por defeito profissional imaginário (o meu pai sonhava que eu estudasse arquitetura; estudei sociologia, mas agora sou capaz de voltar à escola para pensar em dinâmicas residenciais). Mais que isso, é gosto trivial pelo detalhe. Os tacos do soalho querem-se a ceder. As paredes, a resistir à humidade de cada inverno. A caixilharia de madeira, a devolver-nos a tinta mal aplicada. As persianas onde não chegamos, a colecionar teias de aranha. E tudo isto é delicioso. O assombro que me mete medo não é o de fantasmas que encheram a barriga de segredos, gargalhadas e ralhetes, é o dos espaços não vividos. Talvez por isso prefira espreitar as janelas sem cortinas do meu bairro aos sites de imobiliárias com fotografias tão mentirosas como um candidato numa entrevista de emprego.


Espreitem também através das teias destas outras aranhas:

Boas Intenções

Panados e arroz de tomate

A Gata Christie

A curva

20 fevereiro 2025

Isto nunca deixou de ser um babyblog

A coisa que requer mais coragem no mundo é ser mãe.

Coragem para ouvir o que pode ser muito difícil de ouvir. Coragem para fazer o que não faríamos de outro modo.

Quem me vê de fora admira-se por tantas coisas desconfortáveis e fisicamente exigentes que faço, mas não há montanha tão alta nem precipício mais ameaçador do que dizer diariamente que sim aos desafios da maternidade.

14 fevereiro 2025

Atraso de vida

Aviso à navegação: este post não vai ser sexy. Achei por bem avisar porque é Dia de São Valentim, não quis gorar as expetativas de ninguém.

Não compreendo isso de as pessoas se atrasarem. Não me atraso. Não tenho de me apressar para não me atrasar, acontece, simplesmente. Sou aquela amiga que muita gente deixa à espera (tenho uma que me cumprimenta sempre com um "desculpa"). Não faz mal, já estou à espera de estar à espera. Mas não esperem que eu me atrase. A sério, o atraso na vida serve que propósito? É uma forma de protesto em relação ao que nos é imposto? Se é imposto, prefiro despachá-lo. Claro que preencho o IRS nos primeiros dias. Levanto-me da cama assim que toca o despertador. Entrego os trabalhos muito antes dos prazos estipulados. Sou destituída dessa aparente lascívia de brincar com o tempo, o meu e o dos outros. Sou incrivelmente fiável, aborrecida e organizada. E se achavam que agora virava o bico ao prego para efeitos estilísticos, lamento.


Felizmente, há quem se atrase com sentido:

A curva

A Gata Christie 

Boas Intenções

O blog azul turquesa

Panados e arroz de tomate

(falta a Helena, que sobrevive numa sociedade que não tolera o atraso, estou em pulgas para saber como)

07 fevereiro 2025

Espelho meu

Se um ovo consegue equilibrar-se num muro, não vão ser as minhas vertigens a evitar a mesma habilidade. Este princípio resume uma abordagem bastante ingénua perante a vida. É o tipo de postura que nos salva por estes dias, vão por mim. Insisto militantemente na esperança e no absurdo.

Por cima da cómoda MALM de quatro gavetas, código 704.035.74, que está ao lado da minha cama e que serve de stand up desk nos dias de teletrabalho, fica um espelho retangular sem código nem nome, foi uma tia que o ofereceu. De tempos a tempo, o meu olhar foge do ecrã do portátil para lá. Sou uma ótima colega de trabalho de mim própria: elogio a colega (apesar do cabelo sempre despenteado), deixo-a comer as melhores bolachas, sou a primeira a sugerir uma pausa. Evito os mexericos mas o convívio constante com o meu reflexo obriga-me a enfrentar a dura realidade de estar ali. Queria passar para o outro lado do espelho. Deixava as pantufas arrumadinhas, as mensagens de correio eletrónico por responder, e alçava a perna. O meu espelho não devolve uma imagem do que já não é, convida às possibilidades do que ainda não foi. É o único lago onde não consigo mergulhar. E há tanto, tanto mundo que ainda quero ver.

As restantes espelhadas estão aqui: A Gata Christie, Boas Intenções, O Blog Azul Turquesa, Panados e arroz de tomate (em atualização)


31 janeiro 2025

Espalhar-se ao comprido

Esta noite, espalhei-me ao comprido na cama porque tinha calor e frio e calor e frio, cabelos na cara, pés gelados, nariz pingão. Aquela luta viral que combatemos desde o primeiro contágio na creche até ao fim das forças do nosso sistema imunitário. "Viral" mudou pelo menos duas vezes de sentido desde que aqui escrevi pela última vez. Numa, passou a sinónimo do que se propaga na Internet, espaço de desconhecidos, algoritmos e velocidades estonteantes. Noutra, quando ficámos todos em casa a fazer pão e a bater palmas, numa distopia sobre a qual ainda é prematuro falar.

Como não dormi grande coisa, idealizei listas de compras, programei máquinas de roupa em dívida, fui fazer um chá. Ou seja, a noite poupou-me um pouco o dia. Ao dia, roubo uns minutos para regressar aqui, empurrada pela Carla e acompanhada por quem mais se dispõe a estatelar-se de novo neste formato. Outras se espalharam também, como a Joana e a Calita.

16 fevereiro 2015

o título do fim

Este é o princípio do fim. Noventa porcento do tempo de intervalo desde a última vez que escrevi foi ocupado numa tarefa interminável. Terminada a tarefa, sinto-me na obrigação de justificar os outros dez porcento da ausência: sumiço de qualquer espécie de vontade de voltar aqui. Já a necessidade de justificar-me explica à roda de noventa porcento dos dez porcento supramencionados. Não quero estar aqui por obrigação, ainda que imposta por mim e por mais ninguém. Um dos vários posts que ficarão agora no eterno limbo de rascunhos dizia qualquer coisa acerca da importância de não sermos desistentes dos nossos valores, de não educarmos os nossos filhos para o relativismo. Os restantes dez por cento dos dez porcento prendiam-se de alguma forma com essa armadilha em que caí ao tentar escrever qualquer coisa coerente e verdadeira sem agredir, mas sem ceder à indefinição. De modo que espero que não se tenham perdido nas contas mas o que importa é o resultado, ao qual junto ainda um abraço e um agradecimento pela vossa visita. Contas feitas, este é o fim do fim.