Aviso: Post longo, sem barreiras, sem peneiras, que provocará o ocasional sorriso, a pontual lágrima, possivelmente uma ou outra interrupção para ir fazer chichi, a vontade de me insultar, de me dar um ombro amigo, de fazer denúncias à Segurança Social, de nunca mais ler este blogue, ou mesmo de me oferecer um daqueles selinhos queridos.
No dia 3 de Setembro de 2009, aterrei no aeroporto de Newark com um filho de 2 anos e meio pela mão e uma barriga de 4 meses e meio de gravidez. Esperava-nos um marido e pai, físico pós-doc na Universidade de Princeton, uma casa com meia dúzia de móveis, e muitos dias, meses, horas intermináveis pela frente. Desde que escolhi este homem que soube que esta seria uma fase das nossas vidas e a experiência de expatriados uma etapa necessária na carreira dele, um período determinante na construção da nossa família. Também sabia, desde que vivi durante um semestre na Alemanha, que isso me ia custar, por todas as razões de já tanto falei. E custou. Muito.
A adaptação faz-se, não custa assim tanto. Custa é acordar, adormecer, acordar, dias a fio naquilo que se sente como uma prisão domiciliária. Vivemos numa terra pequena, de passagem, habitada por estudantes e cientistas de pouso temporário. Não foi fácil estabelecer laços e houve semanas inteiras em que o meu marido era o único adulto com que contactava. Uma vida de domesticidade pode ser confortável, pode ser muito bom fazer bolos com os filhos enquanto neva lá fora; mas isso, todos os dias, a mim não chega. Principalmente quando lidamos com uma depressão pós-parto e não há tábuas de salvação como a família alargada e os amigos de verdade. Demasiadas vezes, fui muito má mãe. Também devo ter sido má mulher. E fui má pessoa no sentido que deixei de me respeitar a mim própria.
Felizmente, essa sensação de isolamento dissipou-se no segundo ano. Comecei a trabalhar, os meninos foram para a escola e, apesar de materialmente as coisas não se terem alterado, essa quebra na rotina permitiu que apreciasse muito mais as coisas boas de aqui estar. Voltei a sentir-me reconhecida pelas minhas capacidades além-maternidade, conheci até algumas pessoas interessantes, fiz as pazes com os nativos. Foi um ano muito cansativo a nível físico, sobretudo na fase em que tive um marido de perna engessada e vários centímetros de neve com que lutar todas as madrugadas. Mas foi também o ano em que a poeira assentou, as nuvens negras dissiparam-se e consegui definir o que queria mesmo que fosse a minha vida. E queria que fosse não muito diferente disto, mas do outro lado do mar. Queria voltar a casa. Assumi essa vontade e assim voltamos.
Estes dois anos, para o bem e para o mal, não são um interregno, são uma mudança sem retorno. Fiz o luto da minha vida anterior e preparo-me para nascer de novo. Já não me lembro da última vez que peguei no carro sozinha, para espairecer, e conduzi sem destino enquanto berrava impropérios até à rouquidão, lágrimas rolando aos pares pela cara. Aos poucos, o desprezo pela cultura local dissipou-se, passou a paternalismo e espero que tenha chegado à assimilação das coisas boas. Quanto mais não seja, os meus quadris já têm assimilado bastante tarte de natas, chocolate e manteiga de amendoim.
Se valeu a pena? Claro que valeu a pena. Levo daqui uma enorme experiência de vida, um maior auto-conhecimento, um filho americano. Mas isto foi sobreviver, não foi realmente viver. Acho que tenho o direito a viver, mesmo com todas as dificuldades esperadas e inesperadas que temos pela frente.
15 comentários:
Um feliz regresso...e desta vez , a CASA! :)
Muito bem!!!
Sabes, de certa forma todos passamos por fases em que apenas sobrevivemos, enquanto procuramos descobrir como queremos viver e o modos, as formas, as fórmulas como o vamos fazer.
Tu tens é um bocado a mania que és diferente e tiveste que o ir fazer à América, mesmo à "descobridores"!!! LOL
;)
Beijinhos!
Longo? A mim soube-me a pouco. Apetecia-me continuar a ler-te pela manhã fora.
Ainda me vais fazer voltar gralha mulher!
Feliz nova vida :)
Beijinhos e bom regresso
Estou com a Casaca, continuava muito bem a ler isto!
Que o regresso signifique então uma nova fase, muitíssimo feliz!
Engraçado que para além das semelhanças em termos de prole, também vamos iniciar uma nova fase da vida ao mesmo tempo.
COm diferenças, claro, eu não fui para o outro lado do mundo, mas parece-me que as grandes mudanças nem são as geográficas mas as que ocorrem cá dentro da cabecita
Bom regresso Gralha!
Eu também continuava a ler, a ler, a ler!
Gostei da forma como encaraste esses dois anos como uma plataforma para algo, que é mais importante!
Eu sempre disse que mais vale darmos valor com conhecimento de causa. E não acho que tenha sido sobreviver... porque se chegaste a algum tipo de auto-conhecimento, é porque viveste algo, só que diferente!
li o que tinha deixado por ler assim de enfiada... fiquei a sorrir. Acho que isso diz tudo.
beijos
"Sinto" cada CADA palavra do que escreveste. Tens toda a razão!
Beijinhos
A quem gostava de ler mais: continuai por aqui. Não é difícil de adivinhar que vou começar a dizer mal de Portugal e que estou cheia de saudades dos EUA, pois não?
A todas as outras: obrigada por irem aparecendo por aqui. Não sabem a diferença que foram fazendo nos dias de maior solidão :)
Muito, muito bom. Revi-me nalgumas partes...o desprezo/paternalismo pelo país que nos acolhe...a admiração e depois as saudades...
E de todo, não se acredita que tenhas sido má mãe! às vezes dá-se tudo o que se pode dar e só isso já é o mundo.
Querida Gralha,
O teu texto hit close to home. Casada com um americano, professora-virada-mãe-a-tempo-inteiro, encontrei na minha casa nova uma prisão domiciliária, tal e qual descreves a tia. Também me refugiei na cozinha, nos bolos e, entre outros, também acho que fui pior mãe do que devia ou podia.
Bom regresso a ti e aos teus, e que a doçura dos pasteis de nata ajude a matar as saudades dos brownies.
Um sorriso!
Uma das coisas evidentes neste texto e que me faz sempre aqui voltar é esse teu inconformismo com aquilo que não queres. Tem sido muito enriquecedor ler a tua experiência americana, a tua visão irónica e agora já muito terna dos states. Mudaste um bocadinho, porque a dada altura tiveste condições para isso, para poder integrar na tua vida o lado americano mais conseguido (como por exemplo, e lembro-me muitas vezes disso, o reconhecimento que te deram no trabalho que entretanto arranjaste).
Continuas a querer voltar e eu acho que entendo a razão. Nunca vivi fora de Portugal, mas quando viajo de férias, sinto um pouco o que descreves. E sim, provavelmente vais sentir saudades e ainda bem e vais barafustar com esta mentalidade fechadita, mas aposto que te faz falta tanta, tanta coisa que só em casa se tem.
Beijos
Já estou à tua espera! :-D
também li tudo e lia mais. fiquei quase com lágrima no canto do olho, não por me identificar com a história, mas por admirar (invejar?) a determinação, o saber bem o que se quer, o levantar da âncora
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